Tiklem

Conto de autoria de Willy Goes | Traduzido do concani, por Óscar de Noronha*

“Ó burro, pense um bocadinho, seu animal! Ó seu búfalo, faça uso do seu bom-senso, se é que lhe resta algo! Ó seu boi, estão a desmanchar-se todas as propostas de casamento que a sua irmã recebe. E sabe quem é a causa disso? Você!” disse a mãe ao Brikston, dando-lhe um forte puxão de orelhas.

Brikston reagiu com tanta raiva, difícil até de imaginar. E por quê? Não porque tivesse sido chamado burro ou boi, mas porque a mãe lhe deu um puxão de orelhas.

“Não sou rapazola de dez anos, para estar assim a dar-me um puxão de orelha,” disse o filho.

Brikston tinha vinte e oito anos… não se sabendo se se devia considerá-lo moço ou homem. Era bem instruído, mas a sua bebedeira lhe estava a dar cabo da vida. Era dono de um táxi, mas em vez de ele o conduzir, para melhores lucros, deixando o táxi a cargo de um motorista, ficando ele o dia todo sentado a beber na taverna. Este não dava conta do dinheiro ganho; e, por sua vez, o dono contentava-se com a receita desde que lhe assegurasse a sua garrafa.

“Ó mãe, com esse forte puxão de orelha, agitou a minha cabeça e me causou muita raiva! Por isso, pare de falar, antes que eu expluda como um vulcão,” disse em tom de ameaça.

“Ó, você e a sua raiva, meto-os numa lata. Ora, você é bêbado. Não temos medo da cobra feita de folíolo nem da fúria de um bêbado. Oiça agora o que eu lhe tenho a dizer. A sua irmã recebeu uma proposta de casamento. O noivo é empregado do Estado. São quatro irmãos; e este é o mais novo. São três rapazes e uma rapariga. A irmã é tikli – nasceu após três rapazes. Os dois mais velhos já são casados. O noivo está resolvido a não casar enquanto não case a sua irmã,” disse a mãe a Brikston.

“Ó meu Deus! Então, por ser tiklém, esta coitada vai ficar solteira. Ninguém casará com ela; nunca se realizará o seu casamento nem o do irmão. Rejeite a proposta, e veremos outro noivo para a nossa Florishka,” sentenciou o Brikston, como se não houvesse dificuldade alguma em se achar noivos.

“Ó seu boi, quem vai achar outro noivo? Porventura, estarão eles à venda no mercado? A família convidou-nos a ir hoje à sua casa. Diz que enquanto a irmã não achar noivo, ele quer ficar seguro de noiva. Eu estou já velha, é sua responsabilidade casar a sua irmã. Vá com ela à casa do rapaz,” ordenou-lhe a mãe, acrescentando: “E não se embebede. Se não, pode ele rejeitá-la por ser irmã de bêbado. É o que tem sucedido em casos desses.”

“Bom, farei como a mãe quer. Vou levar a Florisha à casa dessa gente; e também verei se a irmã do rapaz encontra noivo,” disse Brikston, tomando sobre si a responsabilidade de casar a irmã.

Brikston e Florishka chegaram à casa do potencial noivo. Foram bem recebidos, sentaram-se e estiveram a conversar. Stanzar, o noivo, era funcionário público do Upper Division Clerk - UDC. Não tinha vícios de fumar nem beber. Pela conversa, via-se claramente que Stanzar se simpatizara com Florishka. A sua irmã constituía o único impedimento: ele não casaria antes de ela se casar.

“Onde está a sua irmã? Podemos conhecê-la antes de partirmos?” perguntou Brikston a Stanzar.

“Sem dúvida, não deixem de falar com ela antes de partir, e vejam se lhe acham noivo. Mas só vos previno: ela é tiklém: nasceu a seguir a três irmãos,” explicou Stanzar. “Trishka… Trishka, anda cá.”

Vindo ao encontro dos hóspedes, Trishka cumprimentou-os com uma risada. Era bem-parecida, de tez clara, de estatura mediana. Tinha sempre um riso na cara e porte jeitoso. Era de encher a vista. Logo que a viu, Brikston ficou estupefacto, preso ao seu lugar, porém, como se a levitar. Dentro do seu peito, o coração palpitava sem parar.

“É esta a sua irmã? Como é seu nome?” perguntou Brikston, embora apenas há uns momentos Stanzar a tivesse chamado pelo nome.

“Trishka. O meu nome é Trishka. E o seu?” perguntou suavemente.

Ouvindo essa voz tão doce, Brikston levantou-se e, aproximando-se da Trishka, disse, estendendo-lhe a mão: “O meu nome é Brikston. How do you do?

“Nice name. I am fine, thank you.” respondeu Trishka, apertando a mão.

Após mais dois dedos de conversa, Brikston levantou-se, passou uma vista de olhos por todos, e dando uns passos em direcção de Stanzar, despediu-se com um aperto de mão.

“Não sei se você gostou ou não da minha irmã, e nem me preocupo com isso. O facto é que gostei da sua irmã, Trishka. Poderíamos conversar mais sobre o assunto, o mais cedo possível, em minha casa. Por hoje é só. Vamos embora. Mog asum di.” E dito isto, partiram.

“O quê, seu bêbado! Você deu a palavra a essa tiklém? Antes disso, devia pelo menos consultar-me, seu animal! Não sabia que ela é tiklém? Quem se casa com uma tiklém?! Uma vez boi, sempre boi.”

Dito isso, a mãe de Brikston ia dar-lhe um puxão de orelha, quando ele, segurando a sua mão, impediu-a.

“Diga o que quiser, mas não me puxe a orelha,” disse Brikston terminantemente à mãe, apontando o dedo no ar. “Isso de tiklém-biklém não me interessa. É tiklém não por culpa própria! Coitada, nasceu depois de três irmãos. Que mal há nisso? Não presto atenção a essas superstições. Se isso de ser tiklém-biklém lhe interessa, isso é lá consigo. Vou casar-me com Trishka, and that is final!” disse Brikston firmemente.

“Tens alguma coisa a dizer, querida, a respeito da decisão do nosso bêbado?” perguntou a mãe, dirigindo-se à Florishka.

“Mãe, em primeiro lugar, pára de lhe chamar bêbado, boi, burro… Tu mesmo lhe deste o nome de Brikston, então porque lhe chamas de bêbado, boi, burro…. Quanto mais lhe chamares de bêbado, mais ele beberá. Chama-lhe pelo nome próprio, com carinho, e vê lá como ele vai mudar. Em segundo lugar, já que ele escolheu noiva, deixa-o casar com a rapariga. Isso de tiklém-biklém é cantiga.”

É claro que a mãe não gostou do que ouvira da boca de sua filha Florishka.

“Já percebi. Disse o rapaz não casará sem que a irmã fique arrumada: é por isso que tu estás a apoiar o teu irmão! Se por casar com a tiklém lhe vier a acontecer algo, seja a ele ou a nós, serás tu responsável. Percebeste?” disse a mãe, furiosa.

Correram os dias no meio dessa polémica, mas Brikston, sempre intransigente, casou com Trishka. Um mês antes, haviam casado os respectivos irmãos, Florishka e Stanzar.

O casamento de Brikston com a tiklém provocou grandes prejuízos a muitos co-aldeãos, ou seja, às tavernas, pois, Brikston parou de se embriagar e nem sequer suportava o cheiro a álcool. Mais, ficou desempregado o motorista do táxi, pois Brikston tomara-lhe as rédeas, vindo a ganhar rios de dinheiro. Aos poucos, teve meios para adquirir mais dois carros de praça, de modo que, em três anos de casado, já tinha três carros em casa, um conduzido por ele próprio e os outros dois entregues a motoristas da sua confiança. Estes prestavam contas regularmente. Além disso, Brikston consertou a sua casa e investiu dinheiro no banco. E assim se tapou a boca da mãe.

Ao fim de cinco anos de casamento, o casal tinha já três filhos. E estando grávida pela quarta vez, a mãe de Brikston aguardava a sua hora, ela que há tantos anos esperava que lhes viesse algum azar por via da tiklém. Efectivamente, nasceu-lhes uma menina, uma nova tiklém.

“Já viu isto? Já lhe tinha prevenido para não casar com a tiklém. Veja como a tiklém nos trouxe uma nova tiklém, como não podia deixar de ser... e quem casará com ela?” – desafiou a mãe ao Brikston.

“Ó mãe, esta criança, coitadinha, acaba de nascer. Quando ela crescer e estiver na idade de casar, encontrará um outro como eu; e tal como a presente tiklém me trouxe grande felicidade, também esta nossa fará o mesmo. Entretanto, a mãe faça votos para que chegue a ver a felicidade da recém-nascida.”

 * Nota do Tradutor: Embora a língua concani modernamente se escreva sem acentos ortográficos, vai acentuada a palavra tiklém só para indicar a pronúncia adequada aos leitores portugueses.

Sobre o Autor 

Willy Goes (1963-) é contista e autor de nove livros, sete em concani e dois em inglês. Actualmente é o Director do Goa College of Art. Foi membro do Conselho Consultivo do Concani na Sahitya Akademi, Nova Delhi. Apresentou trabalhos em seminários e ganhou prémios pela escrita criativa e fotografia.

Publicado na Revista da Casa de Goa (Lisboa), Série II, No. 23, Julho-Agosto de 2023, pp. 57-62  https://rb.gy/8qj52

Ligeiramente editado neste blogue.

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Adágios Goeses (Parte III)

Damos aqui uma terceira lista de adágios,[1] extraídos do livro Enfiada de Anexins Goeses, obra bilíngue (concani-português), de Roque Bernardo Barreto Miranda (1872-1935).[2] E desta vez, transcrevemos cada um deles também na corrente grafia romana, embora ainda não estandardizada, da língua concani.

Salta logo à vista, na grafia moderna, o desaparecimento dos sinais diacríticos, a saber, os acentos agudo, grave e circunflexo, o til, a cedilha, o apóstrofo e o hífen, que haviam sido introduzidos por influência do português, durante séculos a língua oficial de Goa. Há quem diga que a romanização da escrita causou a eliminação ou deformação dos sons originais do idioma concani.[3] Mas isso, a ser verdade, não teria sido por inépcia do alfabeto romano que, por meio de certas convenções, bem podia dar conta do recado; mas simplesmente por falta de esforços concertados no sentido de padronizar a escrita.[4]

Será que não houve alguma eliminação ou deformação dos sons quando, por compulsões históricas, o concani – escrito originariamente em Goykanadi, alfabeto em desuso há seculos – passara a empregar os alfabetos devanagárico, canarês, malaiala e persa-árabe? Ora, no século XVI, perante esse mare magnum gráfico e a concomitante falta de meios de impressão, o alfabeto romano veio mesmo a calhar, e, ao longo do tempo, ajudou a engrossar a literatura profana e religiosa do concani, língua esta que, por estranho que pareça, havia os que a queriam somente como língua falada[5] e não literária.

Urge notar que perante o papel que a romanização da escrita teve na preservação e promoção da própria língua, é insignificante a alegada eliminação ou deformação dos sons que ela teria causado. Foram os utentes do concani romanizado, na sua esmagadora maioria católicos, que a usaram como língua literária, enquanto outros, por sinal, os hindus, tiveram unicamente o marata como sua língua literária, e só muito mais tarde, ou seja, nos anos sessenta do século XX, vieram a patrocinar o concani; e o fizeram usando caracteres devanagáricos, tal como em marata e hindi, de entre outras línguas indianas.

Em todo caso, deixemos aos peritos determinar se o que modernamente está assente na matéria da fonética e ortografia do concani se acha completamente livre da influência de idiomas dominantes, tais como o inglês e o marata. Aliás, não cremos que exista um sistema de grafia perfeito e igual para todos os tempos; o dinamismo linguístico não o permite.

Passando, em seguida, para o vocabulário dos utentes do concani romanizado: vê-se, no texto ora em consideração, que, sem aferrado purismo, em concani são usados muitos vocábulos portugueses (anjo; festa; padre-vigário; presidente), e vice-versa (betle/bétele; ceira), sendo esse fenómeno osmótico muito próprio de línguas vivas. Assim, longe de se corromperem, ambas as línguas se enriqueceram.

Por sua vez, Barreto Miranda, livre de preconceitos, valorizou não só a sabedoria do povo como também a língua da sua terra natal.

Concani | Tradução literal | Tradução livre

Sarquém anjyachém, cornyô devtçarachyô. | Sarkem anjachem; kornneo devcharacheo.

São de anjo as feições

e de demo as acções.

Uma lindíssima aparência

encobre, às vezes, má essência.

Pann’velichyá nibann moxingak udâk. | Panvelichea niban moxingak udok.

A água com que a betle[6]

(trepadeira) é regada,

apanha-a o moringueiro,

ao qual está enroscada.

P’lo benefício feito aos protegidos,

ficam, às vezes, outros atingidos.

Muy zahunn sakor khavunk zay. | Mui zavun sakhor khavunk zai.

Qual formiga tem de ser,

Quem queira açúcar comer.

Tem que ser, muito pequeno

e humilde, como formiga,

se quer viver bem, sereno.

Fest cortá ganv, Padre-vigarachém nanv. | Fest korta ganv, Padri-vigarachem nanv.

Fest cortá ganv, pirjentichém[7] nanv. | Fest korta ganv, presidentichem nanv.

É freguesia que festeja,

mas quem leva a glória da festa

é padre-vigário da igreja.

Melôlê gayêk bará xér dud. | Melole gaiek bara xer dudh.

A vaca que morreu,

doze ceiras[8] de leite

regularmente deu.

Depois da morte de alguém,

dizem dele sempre o bem.

Vhodd gharak poklé vanché. | Vhodd gharak pokle vanxe.

A casa tem o aspecto apalaçado,

mas ocos são os caibros do telhado.

A casa tem a aparência

de abastança, mas as arcas

não têm a suficiência.

Hatachim canknâm tçouchak arsó zay? | Hatachim kanknnam pollovpak arso zai?

Porventura há precisão

de espelho, para alguém ver

as joias da sua mão?

Não há nenhuma utilidade

servir-se de coisas ou meios,

de que não há necessidade.

Xettiló bôil baynt poddló, ganv ailó | Xettilo boil baint poddlo, ganv ailo

xêtt poddló, konui na ailó.                | Xett poddlo, konnui na ailo.

Caiu no poço o boi dum mercador

a aldeia inteira lá compareceu.

Tendo, porém, caído o mercador

ninguém, pessoa alguma, apareceu.

Variante:

Xettitçó bôil mortá zalear, sogló ganv | Xetticho boil morta zalear, soglo ganv

pautá, xêtt melyar konui ye na.           |  pavta, xett melear konnui ie na.

Se morre um boi dum influente,

toda a aldeia comparece.

mas, em morrendo o influente,

nenhuma pessoa aparece.

Ek taltann taliyô vazâ nãy. | Ek talltan talleo vazonant.

Uma mão só, palmas

não pode bater,

sempre de outra mão,

tem que depender.

Há actos que não podem

ser postos em acção,

sem haver dependência

ou cooperação.

Tus kanddunn hatak fôdd. | Tus kanddun hatak fodd.

Pilando casca de arroz,

nada se adquiriu, senão

as empolas para mão.

De tanto trabalho feito,

não se auferiu proveito.


[1] Cf. Revista da Casa de Goa, Série II, No. 18, Set-Out 2022, pp. 33-34

[2] Roque Bernardo Barreto Miranda, Enfiada de Anexins Goeses, dos mais correntes (Goa: Imprensa Nacional, 1931)

[3] ManoharRai SarDessai, A History of Konkani Literature: from 1500 to 1992 (New Delhi: Sahitya Akademi, 2000), p. 22.

[4] “… representa os sons melhor do que os alfabetos indianos não modificados; e não implica nem com a música nem com os vocábulos.” (Mariano Saldanha, “A Língua Concani: as suas Conferências e a acção portuguesa na sua cultura”, in Boletim do Instituto Vasco da Gama, No. 71, p. 28)

[5] Não é de admitir que se tenha perdido toda a literatura em concani nas fogueiras da Inquisição, pois encontrar-se-ia algo desse registo pelo menos fora da jurisdição desse temido Tribunal.

[6] O mesmo que bétele, planta aromática (Piper betle) cultivada na Ásia.

[7] Corruptela de “presidente”.

[8] Antiga medida de peso, na Índia.

Publicado na Revista da Casa de Goa, Série II, No. 21, Mar-Abr 2023, pp. 59-62

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Correspondência epistolar de Shankar Ramani

Por ocasião do centenário de nascimento de Shankar Ramani, traduzi uns trechos da sua correspondência epistolar em concani, publicada pela Revista Zaag (Vol. 32, No. 1, Agosto de 2005, pp. 20-22), da direcção de Ravindra Kelekar, e aos quais acrescentei notas de rodapé.

Sem data

Prezado Sr. Gajanana Jog[i]

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De volta da escola, passávamos pela casa do Sarmalcar. Sada Sarmalcar[ii] era amigo de meu Pai. No vaivém da escola, dizia ‘Lá vai o fraco pugilista Ramani.’ Depois disso eram as casas do dr. Edu Poi[iii], Namtu Poi Dhungat[iv], Prof. Araújo Mascarenhas[v], e no fim da rua a grande casa do magnate Dempó[vi]. Eram casas ligadas. De entre elas, ficava a casa do proprietário Dattá, e ligada a ela a de Padmanata Xette. Em frente à casa do proprietário Dattá, no fim da rua, depois das casas de Ramachondra Xette, D. B. Desai, o rato do Neurencar, via-se a uma fila de casas de Pundolica Camotim[vii]. Essa era outra rua. Antes de esta começar, à esquina, havia um poste. Ao cair da tarde, um empregado da Câmara era obrigado a pendurar nele um petromax aceso.

A rua que passava pela escola ia direita à praça de automóveis. Aí se situavam as lojas de roupa e de confeitos. A rua que tomávamos de volta da escola ia direitinha ao cemitério de Santa Inez[viii]. No caminho, depois de Dom Bosco[ix], na mesma rua ficava a máquina de descasque e outra de fabrico de gelo de um parse[x]. Aquela era manejada por um indivíduo de nome Xencor. O parse era amigo de meu Pai. Quando fossemos lá, o parse ordenava ao Xencor que me desse gelo. Era uma máquina muito conhecida. Na traseira havia uma casa de balcão onde sentava a notória mulher pública, Saku. Gorda, sentava-se vestida de maneira coquete. Além de jovens liceístas, de dezassete ou dezoito anos, eram seus clientes grandes advogados e comerciantes, segundo me disse, na altura, Kamlakar Nagorcencar[xi]. E era verdade.

Até o ano de 1938, a cidade de Pangim se estendia dos Correios até à casa do Dr. Govinda Vaidia[xii]. A zona adiante fazia parte da aldeia de Taleigão[xiii]. Foi por isso que, até 1938, Soku ocupou esse balcão sem receio. Logo depois, veio um novo Governador, José Cabral[xiv]. Homem inteligentíssimo, mas ateu. Promulgou uma nova lei a estender os limites da cidade para além do cemitério. Em consequência, chegou a hora de mudar de casa. Para onde iria? Adiante, era tudo crematório. Já antes das cinco da tarde, a gente tinha medo de passar pelo cemitério. Um advogado que era cliente da Soku deu-lhe, porém, uma ideia. Soku fez logo um requerimento, enviando-o directamente ao Governador Cabral. Eis o conteúdo: “Trabalho como prostituta, servindo assim a sociedade. Não só isso, até dou um desconto aos alunos do Liceu.” O Governador foi esperto. Logo que leu esse requerimento de Soku, despachou: “Quem tem arte, faz vida em toda a parte.”

Por hoje é só.

Se me der na bitola, escreverei de novo.

Espero a sua resposta.

Como sempre,

Shankar Ramani

24.8.1995

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Até o ano de 1928, não havia luz eléctrica em Pangim. Em certos cruzamentos ardia o petromax a noite inteira. Em 1929, veio a corrente eléctrica. O Governo enviara dois engenheiros para tratar da instalação de postes e de uma central eléctrica[xv]. Um deles era alemão, outro parse. Quando passavam os fios por cima dos postes, lembro-me de lhe ouvir dizer: ‘Ó, pá; ó, pá’. No dia em que Pangim veio a ter electricidade, toda a gente se pôs a passear pela cidade. Eu, o Kamlakar e o Casimiro Monteiro[xvi] vadiámos até às dez da noite.

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27.8.1996

Prezado Sr. Jog

No ano de 1933 passei o Primeiro Grau com a nota de ‘Bem Habilitado’. Em junho de 1938, meu Pai matriculou-me como interno numa escola oficial. Ia-se à escola pelo recinto do Liceu. Descendo os degraus, chegava-se ao pé da Igreja. Depois, dando volta ao jardim, passava-se pelo Cine-Teatro Nacional[xvii] e o Quartel da Polícia[xviii]; e logo então, dobrando a esquina da Biblioteca Central[xix], chegava-se à nossa escola, que abria às 8,30 da manhã. Às 10,45, tínhamos um intervalo de 15 minutos. Nessa altura, chegava minha mãe, trazendo pães redondos, bem cortados, com manteiga caseira e açúcar, para eu comer, e café para beber. Eventualmente, se ficasse com muita fome, ia eu ao mercado na vizinhança onde comia gelebis[xx] de valor de um poiçá[xxi]. Um pouco além era o Campal. Na aula, sentava-me ao pé da janela. Eram dois alunos em cada banco. O outro era o mestiço Hugo Mendes. Não estudava nada. Era só esperteza saloia. O nosso professor chamava-se Frutuoso[xxii]. Um bom homem. Excelente professor. A janela dava para ver os vapores que faziam carreira entre Pangim e Betim[xxiii].

Nos primeiros seis meses, à parte o desenho, tive boas notas em todas as disciplinas. Infelizmente, por um mês sofri um ataque de sarna nas mãos. Nos primeiros dias, o professor deixou-me sentar sozinho num banco lá fora. Depois, fui proibido de vir à aula até curar a sarna. Perdi assim um mês e meio a dois meses. Enquanto me restabelecia, eram os dias de exames. Saí aprovado. Perdi a nota de Distinção. Precisamente nesse ano o meu Pai foi transferido para Mormugão. Entretanto, enviou os filhos para a aldeia de Durbate[xxiv], onde construíra uma casa.

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[i] Gajanana Jog é um eminente contista na língua concani.

[ii] Sada, diminutivo de Sadananda, Sarmalcar era livreiro, com loja ao pé do templo Mahalaxmi, em Pangim.

[iii] Edu Poi, de nome complete Roguvira Sridora Poi Vernencar, descendente do antigo Malú Poi Vernencar, líder da comunidade hindu dos tempos do conquistador Albuquerque, era um recorrido clínico em Pangim, com residência na antiga Rua Afonso de Albuquerque.

[iv] Comerciante de ferramentas em Pangim.

[v] Distinto professor do Liceu, advogado, escritor e poeta, de nome completo Joaquim de Araújo Mascarenhas

[vi] Abastado proprietário e homem de negócios.

[vii] Comerciante geral.

[viii] Um dos bairros e paróquias de Pangim.

[ix] A Escola Dom Bosco foi fundada em Pangim, no ano de 1942, no sítio onde existia o palecete do Conde de Nova Goa.

[x] Na altura, talvez o único parse estabelecido em Goa, de apelido Mody.

[xi] Advogado em Margão.

[xii] Médico-cirurgião, que, segundo me informou o poeta Madhav Borcar, fabricara um aparelho electrocardiograma, para uso próprio.

[xiii] Uma das aldeias do concelho das Ilhas, a qual deu guarida à frota de Afonso de Albuquerque.

[xiv] Um dos mais eminentes governadores da antiga Índia Portuguesa, no período de 1938-45

[xv] Na altura, situava-se na Rua Heróis de 5 de outubro, hoje Rua Atmarama Borcar.

[xvi] Agente da Polícia, transferido de Goa por ordem do juiz Severino Balula.

[xvii] Fundado como Éden Cinema, passou a ser denominado Cine-Teatro Nacional em 1933.

[xviii] Situado na antiga Praça das Sete Janelas, depois conhecida como Largo Afonso de Albuquerque.

[xix] Fundada em 1832, com o nome de Pública Livraria, passando ultimamente a ser denominada Biblioteca Vasco da Gama, ora Krishnadas Shama Central Library, transferida para a nova urbanização do Pattó.

[xx] Doce de tipo bobina suculenta

[xxi] Moeda indiana

[xxii] Talvez se refere ao professor José Egídio Fidelis Frutuoso de Souza, de Pilerne.

[xxiii] Bairro da aldeia de Verém, do concelho de Bardez, que se situa na banda norte do rio Mandovi.

[xxiv] Aldeia do concelho de Pondá, um dos portos de navegação fluvial onde a lancha Pangim-Sanvordém fazia escala e onde descarregavam os patamaris vindos do Canará e de outros lugares.

(Publicado na Revista da Casa de Goa, https://casadegoa.org/revista/ii-serie-n-o-19-novembro-dezembro-de-2022/

Série II, No. 19, Novembro-Dezembro de 2022)


Adágios goeses (Parte 2)

Neste número, em continuação do anterior (Revista da Casa de Goa, 2022, II Série, No. 17, pp. 35-38), divulgamos mais adágios seleccionados e traduzidos, do valioso repositório bilíngue (concani-português), Enfiada de Anexins Goeses, da autoria de Roque Bernardo Barreto Miranda.

Entretanto, no texto que segue, note-se seis vocábulos portugueses concanizados: Entrudo; Páscoa; festa; cruz; experimentar; letrado. É que o português e o concani mutuamente se influenciaram.

Tradução literal Tradução livre
Moddvol’achém moddém bâ’yr kaddlyâ bagôr, kãy colo’na. Só quando vai-se enterrar

um mainato, se avalia

se era ou não do próprio, a roupa

com que em vida se vestia.

Há oportunidades

que mostram realidades.

 

Roddtyâ dadlyak ani hanstê baylek patiyevum na ye.     Do homem a chorar

e da mulher que ri,

é bom desconfiar.

Anddir assá cheddó, sodunk bountá sogló vaddó. Tendo o filho à ilharga, vagueia

a buscá-lo por toda a aldeia.

 

Quem não anda com tento e atenção,

não nota até no que está junto à mão.

Sat’tê fuddém xahaneponn kityak upcara na. Ante o poder ou pressão,

não prevalece a razão.

Mas khailolém Intrudak, dênk ayló Pascanchyá-festak. Comera carne

Na ocasião de Carnaval

E teve arrôto

No dia da Festa Pascal.

 

Atribuir, sem razão,

o resultado ou efeito

a uma causa de ficção.

Variante

A coisa passou outr’ora,

e vem tratar dela agora.

Dilolém naká, sanddlolém zay. Não quer quando é of’recido,

E quer, quando está perdido.

Quando tem, não aproveita,

rejeita a utilidade,

e quando há falta, sente

a sua necessidade.

Anthurun pormaném pãyem sôddche. Conforme a cama

que possuir

estenda os pés

para dormir.

Para governar-se sempre bem,

Tem que viver-se co’ o que tem.

Moddlolyá kursák kon mann di na. A cruz, que se vê quebrada

por ninguém é respeitada.

 

A quem deixou de ser rico ou potente,

festas e adulações não faz a gente.

Goroz zaly, voiz meló. Conseguido o objectivo

morreu o facultativo.

 

Obtido o favor

já não mais se lembram

do seu benfeitor.

Experimentar zalyá sivay, letrad zay na. Sem experiência ter

letrado não chega ser.

 

É sempre p’la observação

Ou prática, que das coisas

Se tem a melhor noção.

(Publicado na Revista da Casa de Goa, Série II, No. 18, Setembro-Outubro de 2022, pp. 33-34)


Adágios goeses

É possível que a literatura oriental seja ‘o mais precioso repositório de adágios e provérbios, como o é de fábulas e de contos populares,’ afirma João de Figueiredo[i] no prefácio à Enfiada de Anexins Goeses, obra bilíngue (concani-português), de Roque Bernardo Barreto Miranda.

Roque Bernardo Barreto Miranda (1872-1935)

Filho do grande literato Jacinto Caetano Barreto Miranda, de Margão, além de trabalhar como chefe da impressão da Imprensa Nacional, em Nova Goa (Pangim), colaborou na imprensa local com prosa e verso. De entre a sua obra poética, encontram-se Coisas sabidas (1923), Disparates em verso (s. d.), e ainda um e outro trabalho inédito.[ii]

Na Enfiada, vêm à luz 200 ditos regionais, que nas palavras de Barreto Miranda são ‘flores do folclore de Goa’. Recolheu-os, em primeira mão, na conversação da gente, traduzindo a maioria deles em duas versões, literal e livre, ambas transcritas mais adiante. Não se trata, pois, de provérbios, máximas ou sentenças, o que seria de sabor clássico, mas, simplesmente, de adágios, ditados, ou rifões, de sabor popular.

Dir-se-ia que esse trabalho prima pelo seu valor sociológico e poético. Uns anos antes, monsenhor Sebastião Rodolfo Dalgado publicara, pioneiramente, em Coimbra, Florilégio de provérbios concanis (1922), contendo 2177 provérbios. Mas havia, sem dúvida, espaço para mais gente na seara.[iii] Barreto Miranda publicou anexins, dos mais correntes, no Heraldo, diário panginense, porém, numa altura em que poucos teriam dado conta do serviço que estava a prestar à terra.

Ainda por cima, traduziu os adágios, primorosamente, em verso, pondo-os assim em pé de igualdade com a sabedoria comum dos povos e a literatura universal.

Ora, quanto à ortografia e pronunciação dos vocábulos concanis, transcrevemos a seguir, como informação de utilidade, e não menos de curiosidade, as palavras de Barreto Miranda:

‘A escrita do concani – cuja ortografia em caracteres romanos, por não estar ainda bem definida – foi feita, para facilitar o leitor, possivelmente, conforme a fonologia popular em voga.

‘Relativamente à pronunciação: por não haver no alfabeto romano fonemas com que se possam exprimir precisamente certas palavras concanis, servimos da geminação de letras – letras cacuminais – as quais têm de ser fortemente articuladas com a ponta da língua, para dar o som aproximadamente natural da pronúncia concani. E para fácil enunciação, devem as palavras pronunciar-se em sílabas separadas. Para exemplo: melyá – kaddlyar – dounddolyá – vaurtolyak – devem ler-se assim: me-l-y-á – kadd-ly-ar – do-un-ddo-ly-á – va-ur-to-ly-ak.[iv]

Não subscrevo de todo o sistema ortográfico seguido pelo estimado autor da Enfiada, limitando-me a observar que, quase um século após essa sua advertência, e apesar de, no enretanto, ter havido várias tentativas no sentido de uniformizar a ortografia e pronunciação da língua concani (sendo uma delas segundo o sistema Jonesiano, apresentada por monsenhor Dalgado), a situação continua no mesmo pé. Mas isso pouco retira o valor à Enfiada de Barreto Miranda.


Tradução literal | Tradução livre
Melyá bagór sorg melâ na.
Não se chega a ver
 o céu sem morrer.
Não se alcança qualquer bem ou ventura 
sem passar por trabalhos e amargura. 
Tondd aslyar vatt assá.
Quem boca tiver,
tem via que quer.
Chega para onde quiser,
no país desconhecido, 
quem sua língua souber.
Boreak guelyar fattir yetá.
Por ir alguém fazer o bem, 
mais das vezes o mal lhe advém.
Tenkdênn momv kaddlyar, tonddant poddâ na.
Nunca a boca saboreia
quando se quer apanhar,
com cambo, o mel da colmeia.
É melhor por si fazer,
p’ra, o que se deseja, obter. 
Dounddo’lyá fatrár pãyon dovorçó nay.
Não deixar nunca o pé assente
sobre uma pedra movediça,
(por se deslocar facilmente).
É sempre acto de imprudência
meter-se em negócio incerto
ou coisas de contingência.
Dongrá-vôylim zaddâm Dev ximptá.
As plantas dos oiteiros (desprezadas
p’la humanidade) são por Deus regadas.
Aos que não têm lar, nem pão, 
sempre a Providência toma
sob a sua protecção.
Dholé add, sounsar padd.
Fora da vista (e cuidado)
o mundo fica arruinado.
Quando o dono está ausente, 
as coisas, que lhe pertencem,
são roubadas livremente.
Muclyém zot vetá taxem, fattlém zot vetá.
A junta de bois de traseira
segue conforme anda a primeira.
Do que o de diante faz, 
segue o exemplo o de traz.                                            
Dek’lem moddém, ailém roddném.
O ensejo de encarar
o cadáver, fez chorar.
As ocasiões
provocam acções.    
Borém corchém ani fattir gueuchém.
Fazer o bem e afinal
 receber p’lo dorso o mal.

[i] Enfiada de Anexins Goeses, dos mais correntes, traduzidos em verso, de Roque Bernardo Barreto Miranda (Goa: Imprensa Nacional, 1931), p. VI.

[ii] Cf. “A Evolução do Jornalismo na Índia Portuguesa”, de António Maria da Cunha (in Índia Portuguesa, volume 2, Nova Goa: Imprensa Nacional, 1923); A Literatura Indo-Portuguesa, de Vimala Devi e Manuel de Seabra (Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1971); Dicionário de Literatura Goesa, volume 1, de Aleixo Manuel da Costa (Macau: Instituto Cultural de Macau e Fundação Oriente, s.d.); Dicionário de Goanidade, de Domingos José Soares Rebelo (Alcobaça, 2012). Embora o Dicionário de Literatura Goesa se refira a um inédito intitulado “Frutos sem sabor”, disse-me Jacinto Barreto Miranda, sobrinho do Poeta, que não consta nenhum manuscrito desse nome no espólio do tio.

[iii] Thomas Stephens (c.1549-1619), missionário jesuíta inglês residente em Goa, publicara alguns adágios goeses na sua Arte da Lingoa Canarim, os quais foram traduzidos livremente pelo orientalista J. H. da Cunha Rivara (1809-1879), na segunda edição dessa gramática por ele publicada, em 1857. Isso para não falar de conjuntos posteriores, traduzidos em português e em inglês, estes por V. P. Chavan (Konkani Proverbs, 1900); S. S. Talmaki (Konkani Proverbs and Idioms, 1932), António Pereira, jesuíta goês, (Konknni Oparichem Bhanddar, 1985), e, mais recentemente, por Edward de Lima (Konknni Oparincho Kox: A Book of Konkani Proverbs, 2017); ou ainda os publicados em outros lugares de expressão concani, tal como nos estados indianos de Karnataka e Kerala.

[iv] Enfiada, pp. X-XI.

(Publicado na Revista da Casa de Goa, Serie II, No. 17, Julho-Agosto 2022)


O Popular Príncipe da Poesia Concani

ManoharRai SarDessai (1925-2006) foi professor de Francês nas universidades de Bombaim e Goa; editor de vários periódicos literários; presidente da conferência pan-indiana do Concani; tradutor de obras literárias e históricas; mas, acima de tudo, um dos maiores e mais queridos poetas da língua concani, graças à elegância da sua linguagem e à relevância dos temas que tratava.

SarDessai é tanto goês como cosmopolita, tanto príncipe quanto homem do povo. Nas suas palavras, ‘Hanv Gõycho ani Gõyam bhailo, udenticho ani ostomtecho: Sou de Goa e do além; sou do Leste e do Oeste’.

A sua poesia tem a toada da palavra falada. Foi, sem dúvida, feliz a sua ideia de passar a escrever em concani, sua língua materna além de lngua da terra, quando, aliás, a comunidade hindu prezava o marata como a sua língua de cultura.

Afirma o Poeta Madhav Borcar que a poesia de SarDessai divide-se em dois períodos: pré- e pós-1961, sendo este o ano da integração de Goa na União Indiana.[i] Neste período foi um dos responsáveis, junto com R. V. Pandit e C. F. Costa, por lançar as raízes da nova poesia concani.

Goyãm, tujea moga khatir [Por teu amor, ó Goa!] (1961) abarca, principalmente, a poesia que escreveu durante a estadia na França (1952-58).[ii] Fala com saudade das vozes e paisagens da terra natal e das alegrias e tristezas da vida campestre. Não admira que o seu lirismo tenha atraído a geração contemporânea de literatos.

Regressando de vez a Goa, teve várias intervenções na vida pública. O seu livro Zaiat Zage (1964) é uma forte expressão do seu sentido cívico.[iii]

É particularmente memorável a sua intervenção no destino político da sua terra aquando do histórico Opinion Poll (escrutínio da opinião), realizado em 1967: pôs todo o seu peso a favor da autonomia de Goa contra os planos integracionistas do estado vizinho do Maharashtra. Alguns dos seus mais patrióticos poemas datam desse período, altura em que eles estavam sempre nos lábios da gente.[iv]

SarDessai dirige-se ao grande público com facilidade, graças ao seu dom das línguas: exprime-se em concani, marata, francês e inglês, às vezes, traduzindo ele próprio os seus poemas. Mais significativo, porém, é o Poeta se ter tornado acessível ao público goês, a partir do ano de 1961, pois a escolha do alfabeto e a multiplicidade de dialectos os dividia. Fez questão de escrever em caracteres latinos e devanagáricos, construindo uma ponte entre os falares das comunidades hindu e cristã – como que uma língua franca.

Os poemetos de Zaiô Zuiô [Jasmim] (1970) e Pissolim [Borboletas] (1978) são caracterizados pela economia e precisão vocabular (cinco a sete versos). Ao segundo livro de poesia foi atribuído o Prémio da Sahitya Akademi (Academia indiana de Letras), em 1980.

SarDessai escreveu também poesia para crianças, sendo ‘Bebeanchem Kazar’ [O casamento dos sapos] o seu poema mais popular, pela rima e ritmo.

De igual modo, produziu poemas de louvor a Jesus e Maria. [v]

Os três poemas incluídos neste artigo falam do seu amor à terra e da sua filosofia da vida[vi] Na ‘Oração’, diz com toda humildade: ‘Que a minha aldeia se orgulhe/dos meus feitos, do meu nome,/ tanto basta para mim,/não almejo outro renome.’ Colheu, porém, muito mais: além da afeição do povo, os epítetos Lok Kovi[vii] (Poeta do Povo) e Konknni Kovirai[viii] (Príncipe dos Poetas concanis).

Gõycho Ambo

Gõycho ambo
Mhonva thembo
Gõychea polear
Bhangra tibo.

Gõychea ambeant
Chandnem asa
Suriachem kirnn asa
Amchea mogall zomnintlea
Amrutacho kollso asa
Zaia-zuiam poros dhatt
Gõychea ambeak ghomghomat
Bhurgeachea galaporos
Gõycho ambo rosroxit
Vhonklechea onttaporos
Gõycho ambo lusluxit
Halot, dholot, lozot, moddot
Pachvo podor angar gheta
Sotravem vors futtun
Gõychea ambeant rupak ieta.
Gõycho ambo rosall kovit
Gõycho ambo Gõychem jivit.

A manga de Goa

A manga de Goa
Um pingo de mel,
Um bocado de oiro,
A Manga de Goa.

Um disco da Lua,
uma réstia de Sol,
a Manga de Goa.
Um bouquet de champôs
e de cravos rubros,
a Manga de Goa.

Mimosa
como a face de uma criança,
Voluptuosa
como os lábios de uma noiva,
nossa riqueza,
nosso orgulho,
a Manga de Goa.

Sob o verde véu,
como o seio de uma virgem
na flor dos anos,
entre tímido e ousado,
a Manga de Goa.

Um poema de sumo,
Uma lasca de alegria,
a Vida de Goa,
A Manga, pomo de oiro.

 (Traduzido por Carmo Azevedo) [ix]

Gõy mhojem

Gõy mhojem vhonkol koxi
Panchvea chuddean bhol’leli
Gõy mhojem rat nilli
Noketranim ful’leli.

Gõy mhojem bhurgem koxem
Dongramche manddiecher
Gõy mhojem mogre-kollo
Doriache talliecher.

Gõy mhollear chitr ek
Indradhannun rongoil’lem
Gõy mhollear sop’n ek
Ugddasani vinnlelem.

Gõy mhojem kuberachea
Vozranchi ukti kudd
Gõy mhollear jivitachea
Zoitachi zollti chudd.

Gõy mhollear pavl ek
Dortorechi vatt mezpi
Gõy mhollear tan ek
Vixvacho tal sodpi.

Gõy mhollear konvlli odd
Kallzantlea kavteachi
Gõy mhojem vhoddli zodd
Zolmachea punneachi.

Minha Goa

Minha Goa é como uma noiva
de pulseiras enfeitada.
Minha Goa é noite azul
de estrelas matizada.

Minha Goa é como criança
entre montes passeando.
Minha Goa é botão de flor
à tona do mar vogando.

Goa é um painel
pelo arco de Indra colorido.
Goa é um sonho
de memórias tecido.

Minha Goa é corpo aberto
de riqueza diamantina.
Goa é um facho ardente
duma vida vitorina.

Goa é uma pegada
que os caminhos vai medindo.
Goa é sede sempre em busca
do fundo do mundo infindo.

Goa é ânsia juvenil
do âmago do coração.
Grande é o mérito de quem tem
de em Goa nascer o condão.

(Traduzido por: Jorge de Abreu Noronha)[x]

Magnnem

Sompem utor, saral mon
Itlem mhaka mellchem dhon.

Tambddo patt, pachvem pan
Itlo mhaka puro man.

Svarthachi virchim kupam
Itli mhojer korchi krupa.

Mhaka lagun ful’lo ganv
Itlem mhaka puro nanv.

Oração

Palavra de leveza
e mente sem paleio,
é isto o que eu anseio
como única riqueza.

De rubro lenho um banquinho,
folha verde de banana,
nenhum outro preito espero
ao longo do meu caminho.

Que se esvaiam no horizonte
essas nuvens de ganância:
seja apenas esta a graça
a adornar a minha fronte.

Que a minha aldeia se orgulhe
dos meus feitos, do meu nome,
tanto basta para mim,
não almejo outro renome.

(Traduzido por Jorge de Abreu Noronha)

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[i] Madhav Borcar, ‘Manoharraiali Kovita’, in Atthara Jun (Panaji: Goa Konkani Akademi, 2007), p. 160.

[ii] Doutorou-se na Sorbonne, apresentando a tese intitulada ‘Image de l’Inde en France’, cf. Edith Noronha Melo Furtado, Les Oeuvres de Manohar Rai Sardessai: Point de Rencontre entre l’Inde e la France (Delhi: Goyal Publishers and Distributors Pvt Ltd, 2014).

[iii] De entre outros poemas, escreveu ‘Hi Lokshay’ [Esta democracia], ‘Hundranchi sabha’ [Assembleia de Ratos], que ora fazem parte da antologia Atthara Jun, op.cit.

[iv] Entre outros, ‘Zaiat Zage’ e ‘Ailo Poll’ [Lá vem o Escrutínio].

[v] Entre outros, ‘Ball Jezu Zolmolo’ [Nasceu o Menino Jesus], ‘Khursachi Kanni’ [A História da Cruz], ‘Mhozo Jezu ailo porot’ [Voltou o meu Jesus], ‘Mari Matêk Ballok Zala’ [Teve um Menino a Mãe Maria]; e ainda em homenagem ao S. José Vaz: ‘Khõi Pavlo? Khõicho tum?’ [Donde vens? P’ra onde vais?]. Cf. My Song – Ma Chanson – O meu Canto (Goa: 2008).

[vi] Da escolha de Maya SarDessai, filha do Poeta, a quem agradeço; tirados da colectânea My Song – Ma Chanson – O meu Canto, op. cit.

[vii] Atribuído por Bakibab Borcar, outro gigante da poesia concani.

[viii] Título que lhe foi conferido no concurso de poesia concani inédita, realizado no Clube Nacional, de Pangim, em 2 de janeiro de 1966 (Cf. ‘Prefácio’ de Maria Aurora Couto, ao livro My Song – Ma Chanson – O meu Canto, op. cit., p. 119).

[ix] Carmo Azevedo (1912-2003) foi médico, jornalista e investigador de história e arte goesas.

[x] Jorge de Abreu Noronha (1930-2007), um goês radicado em Portugal, foi um dos principais promotores da ideia de publicar o volume trilíngue (Minha Canção – Ma Chanson – O meu Canto) dos poemas de SarDessai.


Publicado na Revista da Casa de Goa, Serie II, No. 16, Maio-Junho de 2022, pp 38-41. II Série – N.º 16 – Maio/Junho de 2022 – Casa de Goa


Três poemas de R. V. Pandit

À espera de Rama

As minas
Fizeram de Goa
Não sei o quê.
As pedras 
Em ouro transformadas?
Não sei.
Mas uma coisa eu sei –
Homens, que anos atrás
Eram de oiro, 
Hoje estão feitos pedras
Como a Ahilia[1]
À espera de Rama!!

Inimigos pela língua?

Tu e eu
Irmãos somos…
Inimigos tornámos23
Por causa da língua!

O Goês

Homem de Goa
Tu és como a jaca
Com uma coroa de espinhos
Como Jesus Cristo.
Mas por dentro são bagos
Cheios de mel, de amor.
Tu és assim! Tu és assim
Ó homem de Goa.

A poesia de Raghunath Vishnu Pandit (1917-1990), conhecido como R.V. Pandit, é caracterizada pelo uso do verso livre; e, pela objectividade no tratamento do assunto e economia da linguagem, torna-se, às vezes, aforística.

Escreveu os seguintes livros de poesia: Ailem toxem gailem [Cantei tal como senti]; Mhojem utor gavddiachem [Falo tal como um gauddi[2]]; Urtolem tem rup dhortolem [Formas que ficam]; Dhortorechem kavan [Cântico da terra]; Chondravoll [A Lua][3]; e, mais tarde, Reventlim Pavlam [Passos na areia], Lharam [Ondas], além de livros de prosa. A sua obra demonstra entranhado amor a Goa e marcado interesse pelo bem-estar dos extractos mais desfavorecidos da sociedade goesa.

Dedicando-se ao estudo do folclore, publicou dois volumes de histórias tradicionais concanins – Gôdd gôdd kanniô [Contos doces] – e uma versão para crianças de alguns episódios do Ramaiana e Mahabarata. Em 1975, o seu livro Doriá Gazota [O Rugir do Mar] ganhou o prémio da Sahitya Akademi (Academia indiana de Letras). Em 1982, foi recipiendário do galardão Padma Shri do Governo da Índia.

Como fotógrafo amador, Pandit captou de forma excepcional a vida de Gandhi, de quem era sequaz. Foi sócio efectivo do Instituto Menezes Bragança, em Goa, e recebeu o grau de doutor honoris causa de três universidades.[4] É um dos poucos poetas da língua concani e marata com obras traduzidas em português e inglês.[5]

Segundo A Literatura Indo-Portuguesa,[6] de Vimala Devi e Manuel de Seabra, os poemas de Pandit eram vertidos para português pelo próprio; no entanto, todos que encontrámos são da tradução de Mucunda Quelecar[7]; e a tradução inglesa da autoria de Thomas Gay[8]. Na transliteração para caracteres romanos dos seus poemas, que escrevia em devanagárico, teve a ajuda do jornalista Felício Cardoso.[9] E a tradução livre transforma-nos todos em novos poemas.

As três peças que figuram acima tratam de temas candentes do período pós-1961:

O primeiro poema refere-se à transformação da vivência goesa na sequência da exploração das minas de ferro e manganês, a que se procedeu, vigorosamente, a partir dos anos sessenta do século XX. Só após algumas décadas é que o território se apercebeu das nefastas consequências da actividade mineira.

O segundo é um poemeto com um quê de autobiográfico, pois no movimento que precedeu ao histórico Opinion Poll (escrutínio da opinião), em 1967, Pandit bateu-se pela integração de Goa no estado vizinho do Maharashtra de língua oficial marata. Foi por isso hostilizado por escritores goeses da língua concani que eram a favor de estatuto político independente para Goa dentro da União Indiana.[10] Essa rotura com os “irmãos” do idioma goês ter-lhe-ia inspirado esse poemeto.

O terceiro poema é o seu cântico de louvor à índole do povo goês.

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[1] Ahilia petrificou-se quando amaldiçoada pelo marido Gautama, tendo mais tarde mudado de estado com um simples toque dos pés de Rama, príncipe de Ayodhya e herói do poema épico Ramaiana.

[2] Os gauddi, considerados os mais antigos habitantes de Goa, provêm da raça proto-australóide.

[3] Edições de autor, publicadas no mesmo dia (26 de janeiro de 1963), em Goa.

[4] Embora a sua habilitação académica não passasse do bacharelato em Letras (B.A.), recebeu esse reconhecimento de universidades filipina, brasileira e americana (Cf. António Pereira, The Makers of Konkani Literature (1982), p. 230; Konkani Vishvakosh, Vol. II, p. 629).

[5] Voices of Peace (Goa, 1967) e The Tamarind Leaf (Goa, 1967). Os seus poemas em tradução portuguesa estão compilados nos n.ºs 119 (1978), 122, 123 (1979) do Boletim do Instituto Menezes Bragança.

[6] Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1971.

[7] Segundo informações prestadas por Madhav Borcar, poeta goês da língua concani, Mucunda Quelecar (1904-?) (vulgo Mukund[a] Kelekar) tinha conhecimentos profundos do concanim, português, francês, latim e inglês. Escrevia regularmente para O Heraldo e A Vida e, em inglês, para The Navhind Times. Foi professor de português e de matemática num liceu particular em Pangim. Traduziu para o concani os contos de Stefan Zweig.

[8] Thomas Gay, de nome completo, Thomas Edward Waterfield Gay (1905-2001) (sendo este último o apelido de sua mãe, adoptado em 1955), alto funcionário do Quadro dos serviços civis britânicos na Índia (Indian Civil Services, ICS). Segundo nos disse Borcar, Gay limava os poemas traduzidos por Pandit em inglês.

[9] Informação prestada por Borcar. O contista e jornalista Felício Cardoso (1932-2004) lançou as bases da nova sintaxe do concani, no período do pós-1961. O seu jornal Sot fundiu-se com o diário A Vida, formando, mais tarde, o jornal Divtti, de que Cardoso foi director associado.

[10] Informação prestada pelo padre Mousinho de Ataíde.


Reconhecimento: Publicado na Revista da Casa de Goa, Lisboa, Série II, No. 13, Novembro-Dezembro de 2021

https://casadegoaorg.files.wordpress.com/2022/01/revista-da-casa-de-goa-ii-serie-n13-novembro-dezembro-de-2021.pdf


O único poema de Adeodato Barreto, em concani

Bekaryanc

Ganthá dongrá patlean
Súryá uttún yetá,
Aplyá bangr­á-kensán
Dogdogtá.

Sabar bangrá-zori
Tujim kirnam distái:
Ekuch durboryanchi
Guirestái.

Zaityá fudlyá tempá
Amché agé-ponngé
Taca “Suryá-Devá”
Munntalé:

Doryá-laguim vossún
Fantyá-pará vellar
Kori tokli moddun,
Nomoscar:

“Zoxim pilám daktim
Combiê-pakám-khalá
Zoxém avoi laguim
Daktém balloc nidta,

“Toxém amim”, ballocám,
tugê cuxic tencun
guetão adar amcám
Ani gunn.

Côro

Goenché tsakór, uttái!
Sorgar uzvadd zaló!
Súryá uttún ailó!
Báir sorái!

Tumchêo cuddolyô gheún
Bollán dornir honddyái
Tanchê torçadi korún
Handar maryái.

Amchyá bekaryanchá
razvotech’vell ailó:
Bekari, ubé ráum-yá
Sounsar amchó!

 

Aos desempregados

Por trás da cordilheira
Nasce o sol, e derrama
A sua barba soalheira
Em flama.

Fios e fios d’ouro
Formam a tua radiação:
Dos pobres, o tesouro
Da salvação.

Em tempos que já lá vão,
Os nossos antepassados
Ao “Deus-Sol” então
Vinculados:

Indo ao pé do mar,
Ao raiar o dia,
Diziam, ao dobrar
Em cortesia:

“Tal como o pintinho
Sob as asas da galinha,
Dorme o menininho
nos braços da mãezinha,

“Também nós,” filhotes,
A ti aconchegados
Fruímos dos teus dotes
E demais predicados.

Côro

Erga-se, ó braçal goês!
Já se fez luz no céu!
O sol rompeu o véu!
P’ra frente, sem revés!

Com as suas enxadas
Furem o solo com ardor;
Façam delas espadas,
Ombreiem-nas com vigor.

Dos nossos pés-rapados
Chegou a hora prima:
De pé, ó desempregados,
O mundo nos arrima!

(Tradução de Óscar de Noronha, Setembro de 2021)

O único poema de Adeodato Barreto, em concani

Numa casual leitura da história da literatura concani[1] fui surpreendido pelo poema ‘Bekaryanc’, de Adeodato Barreto (1905-1937),[2] porventura o único escrito em concani por essa figura ímpar da literatura luso-goesa e o qual consta d’O Livro da Vida.[3]

Porquê em concani – aos 30 anos de idade – e em Portugal?

Não consta que Adeodato Barreto tenha tido actividade literária nos primeiros 18 anos da sua vida que passou em Goa, então Índia Portuguesa. No entanto, com redobrada coragem e consciência, conjuntamente com alguns colegas goeses em Coimbra, não só criou o Partido Nacionalista Indiano e o Instituto Indiano anexo à Faculdade de Letras, mas também fundou o periódico Índia Nova[4] e as edições Swatwa. A sua actividade visava a propaganda do humanismo e civilização oriental, cujos elementos o grupo aprendera com intelectuais europeus, mormente Romain Rolland e Sylvain Lévi.

Adeodato Barreto exerceu, sucessivamente, as funções de professor e de escrivão de Direito em Aljustrel. Teve iniciativas no ramo de instrução (inclusive um curso de Esperanto); fundou e dirigiu o semanário Círculo, a que se associaram vários escritores do País; e foi assíduo colaborador dos jornais Seara Nova e Diabo. Reuniu a sua prosa jornalística em Civilização Hindu. Autodomínio, tolerância, humanismo, síntese (Lisboa: Ed. de Seara Nova, 1935); e, postumamente, foi publicado O Livro da Vida. Cânticos Indianos (Nova Goa: Tip. Sadananda, 1940)[5].

Sendo esse o ideário do grupo luso-goês, era natural que quisessem salientar a língua e cultura vernácula de Goa. É o que se deduz do seguinte apelo publicado no referido periódico: “Aos nossos leitores que tenham a rara felicidade de saber escrever em concani, pedimos especialmente o favor de colaborarem nesta página que será consagrada exclusivamente à defesa e utilização culta dessa língua.”[6]

Ora, esse plano não vingou, pois o periódico parecia ter mais promotores, aliás bem-intencionados, do que colaboradores proficientes na língua concani! É que os goeses, já desde o período pré-português, haviam sobremaneira usado o concani como veículo de comunicação oral, sendo o marata a língua cultural dos hindus de Goa, tal como o foi, mais tarde, o idioma luso, em relação à elite católica.[7] E se foi somente por gosto de escrever na sua língua materna que Adeodato Barreto se lançou em concani, fê-lo seis anos depois de fechar o Índia Nova, e não constando que tenha tido intenções de continuar a fazê-lo.

Como língua nativa da estreita faixa costeira do Concão, o concani tem diversos dialectos e a fortuna de ser expresso em caracteres romanos, devanagáricos, canareses, malaialeses e perso-árabes. Ora, ‘Bekaryanc’ aparece num dialecto misto de salcetano e bardezano e em caracteres romanos; não emprega a ortografia padronizada, pois, pelo menos no romano, ela não existia na altura; e, sem se perder em preciosismo vocabular, apresenta versificação mais ou menos regular.[8] O Poeta, na sua tentativa de remediar uma carência histórica e melhor realçar a identidade luso-goesa, demonstra um entranhado amor à terra e ao povo.

Não é portanto sem razão que dele diz Ruy Sant’Elmo, no prefácio a O Livro da Vida: “Longe da Índia, onde nasceu, em contacto com um meio europeu, jamais perdeu as características, sentimentais e mentais, que constituíam o seu ethos originário. Adeodato Barreto permaneceu sempre, no fundo, um oriental. A ausência do torrão, embora num país onde era estimado, onde triunfou, e onde constituíu família, tinha para ele o ressaibo amargo de um exílio forçado.”[9]

Será que foi só a partir desse “exílio forçado” que Adeodato Barreto se apercebeu da profunda subalternidade da língua concani e da classe operária na sua terra natal? Embora a sua família em Goa gozasse de privilégios de casta e classe, Adeodato Barreto, no poema ‘Bekaryanc’, ecoa o célebre grito marxiano dirigido ao proletariado. Tê-lo-ia escrito nessa língua para que o povo goês o pudesse ler e entender sem intermediários? Pelos vistos, dois anos antes de a morte o silenciar, Adeodato Barreto sonhou em dar voz aos oprimidos da Índia, como, aliás, de certa maneira o fizera também em relação aos habitantes da sua terra de adopção.

Evidentemente, ‘Bekaryanc’ não pretende ser uma “obra de arte”, mas um simples “desabafo de alma”,[10] como, aliás, diz Adeodato Barreto falando de toda a sua obra poética reunida n’O Livro da Vida. Volvendo, pois, os olhos saudosos a Goa, deu um último grito, em concani, antes do seu último suspiro, em Portugal.

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[1] Pereira, José. Literary Konkani: a Brief History. Panaji: Goa Konkani Akademi, 1992, p. 36; Sardesai, ManoharRai. A History of Konkani Literature. New Delhi: Sahitya Akademi, 2000, p. 139.

[2] De nome completo Júlio Francisco António Adeodato Barreto.

[3] Agradeço à Doutora Sandra de Ataíde Lobo o ter-me facultado este importante pormenor.

[4] Tinha como colaboradores principais José Paulo Teles e Telo de Mascarenhas, ambos estudantes de Direito.

[5] Veja-se também Civilização Hindu: seguido de O Livro da Vida (Cânticos Indianos). Lisboa: Hugin Editores, 2000.

[6] Índia Nova, n.º 1, p. 4

[7] Pelo menos no século XVI, o grande período das conversões religiosas, os portugueses reabilitaram a língua, estudando-a cientificamente, ou seja, confeccionando gramáticas e dicionários, obras que nenhuma outra língua indiana possuía na altura.

[8] O que nem sempre sucede com os seus poemas em português.

[9] Cf. O Livro da Vida. Nova Goa: Edições Swatva, 1940, [p. 8]

[10] In “Proémio”, [p. 13], escrito sob o pseudónimo Forçu Deodat, respectivamente, corruptelas de Francisco e do nome hindu Devdatt.

(In Revista da Casa de Goa, II Série – No. 12 Sep-Oct 2021, pp. 46-48)