Por ocasião do centenário de nascimento de Shankar Ramani, traduzi uns trechos da sua correspondência epistolar em concani, publicada pela Revista Zaag (Vol. 32, No. 1, Agosto de 2005, pp. 20-22), da direcção de Ravindra Kelekar, e aos quais acrescentei notas de rodapé.
Sem data
Prezado Sr. Gajanana Jog[i]
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De volta da escola, passávamos pela casa do Sarmalcar. Sada Sarmalcar[ii] era amigo de meu Pai. No vaivém da escola, dizia ‘Lá vai o fraco pugilista Ramani.’ Depois disso eram as casas do dr. Edu Poi[iii], Namtu Poi Dhungat[iv], Prof. Araújo Mascarenhas[v], e no fim da rua a grande casa do magnate Dempó[vi]. Eram casas ligadas. De entre elas, ficava a casa do proprietário Dattá, e ligada a ela a de Padmanata Xette. Em frente à casa do proprietário Dattá, no fim da rua, depois das casas de Ramachondra Xette, D. B. Desai, o rato do Neurencar, via-se a uma fila de casas de Pundolica Camotim[vii]. Essa era outra rua. Antes de esta começar, à esquina, havia um poste. Ao cair da tarde, um empregado da Câmara era obrigado a pendurar nele um petromax aceso.
A rua que passava pela escola ia direita à praça de automóveis. Aí se situavam as lojas de roupa e de confeitos. A rua que tomávamos de volta da escola ia direitinha ao cemitério de Santa Inez[viii]. No caminho, depois de Dom Bosco[ix], na mesma rua ficava a máquina de descasque e outra de fabrico de gelo de um parse[x]. Aquela era manejada por um indivíduo de nome Xencor. O parse era amigo de meu Pai. Quando fossemos lá, o parse ordenava ao Xencor que me desse gelo. Era uma máquina muito conhecida. Na traseira havia uma casa de balcão onde sentava a notória mulher pública, Saku. Gorda, sentava-se vestida de maneira coquete. Além de jovens liceístas, de dezassete ou dezoito anos, eram seus clientes grandes advogados e comerciantes, segundo me disse, na altura, Kamlakar Nagorcencar[xi]. E era verdade.
Até o ano de 1938, a cidade de Pangim se estendia dos Correios até à casa do Dr. Govinda Vaidia[xii]. A zona adiante fazia parte da aldeia de Taleigão[xiii]. Foi por isso que, até 1938, Soku ocupou esse balcão sem receio. Logo depois, veio um novo Governador, José Cabral[xiv]. Homem inteligentíssimo, mas ateu. Promulgou uma nova lei a estender os limites da cidade para além do cemitério. Em consequência, chegou a hora de mudar de casa. Para onde iria? Adiante, era tudo crematório. Já antes das cinco da tarde, a gente tinha medo de passar pelo cemitério. Um advogado que era cliente da Soku deu-lhe, porém, uma ideia. Soku fez logo um requerimento, enviando-o directamente ao Governador Cabral. Eis o conteúdo: “Trabalho como prostituta, servindo assim a sociedade. Não só isso, até dou um desconto aos alunos do Liceu.” O Governador foi esperto. Logo que leu esse requerimento de Soku, despachou: “Quem tem arte, faz vida em toda a parte.”
Por hoje é só.
Se me der na bitola, escreverei de novo.
Espero a sua resposta.
Como sempre,
Shankar Ramani
24.8.1995
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Até o ano de 1928, não havia luz eléctrica em Pangim. Em certos cruzamentos ardia o petromax a noite inteira. Em 1929, veio a corrente eléctrica. O Governo enviara dois engenheiros para tratar da instalação de postes e de uma central eléctrica[xv]. Um deles era alemão, outro parse. Quando passavam os fios por cima dos postes, lembro-me de lhe ouvir dizer: ‘Ó, pá; ó, pá’. No dia em que Pangim veio a ter electricidade, toda a gente se pôs a passear pela cidade. Eu, o Kamlakar e o Casimiro Monteiro[xvi] vadiámos até às dez da noite.
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27.8.1996
Prezado Sr. Jog
No ano de 1933 passei o Primeiro Grau com a nota de ‘Bem Habilitado’. Em junho de 1938, meu Pai matriculou-me como interno numa escola oficial. Ia-se à escola pelo recinto do Liceu. Descendo os degraus, chegava-se ao pé da Igreja. Depois, dando volta ao jardim, passava-se pelo Cine-Teatro Nacional[xvii] e o Quartel da Polícia[xviii]; e logo então, dobrando a esquina da Biblioteca Central[xix], chegava-se à nossa escola, que abria às 8,30 da manhã. Às 10,45, tínhamos um intervalo de 15 minutos. Nessa altura, chegava minha mãe, trazendo pães redondos, bem cortados, com manteiga caseira e açúcar, para eu comer, e café para beber. Eventualmente, se ficasse com muita fome, ia eu ao mercado na vizinhança onde comia gelebis[xx] de valor de um poiçá[xxi]. Um pouco além era o Campal. Na aula, sentava-me ao pé da janela. Eram dois alunos em cada banco. O outro era o mestiço Hugo Mendes. Não estudava nada. Era só esperteza saloia. O nosso professor chamava-se Frutuoso[xxii]. Um bom homem. Excelente professor. A janela dava para ver os vapores que faziam carreira entre Pangim e Betim[xxiii].
Nos primeiros seis meses, à parte o desenho, tive boas notas em todas as disciplinas. Infelizmente, por um mês sofri um ataque de sarna nas mãos. Nos primeiros dias, o professor deixou-me sentar sozinho num banco lá fora. Depois, fui proibido de vir à aula até curar a sarna. Perdi assim um mês e meio a dois meses. Enquanto me restabelecia, eram os dias de exames. Saí aprovado. Perdi a nota de Distinção. Precisamente nesse ano o meu Pai foi transferido para Mormugão. Entretanto, enviou os filhos para a aldeia de Durbate[xxiv], onde construíra uma casa.
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[i] Gajanana Jog é um eminente contista na língua concani.
[ii] Sada, diminutivo de Sadananda, Sarmalcar era livreiro, com loja ao pé do templo Mahalaxmi, em Pangim.
[iii] Edu Poi, de nome complete Roguvira Sridora Poi Vernencar, descendente do antigo Malú Poi Vernencar, líder da comunidade hindu dos tempos do conquistador Albuquerque, era um recorrido clínico em Pangim, com residência na antiga Rua Afonso de Albuquerque.
[iv] Comerciante de ferramentas em Pangim.
[v] Distinto professor do Liceu, advogado, escritor e poeta, de nome completo Joaquim de Araújo Mascarenhas
[vi] Abastado proprietário e homem de negócios.
[vii] Comerciante geral.
[viii] Um dos bairros e paróquias de Pangim.
[ix] A Escola Dom Bosco foi fundada em Pangim, no ano de 1942, no sítio onde existia o palecete do Conde de Nova Goa.
[x] Na altura, talvez o único parse estabelecido em Goa, de apelido Mody.
[xi] Advogado em Margão.
[xii] Médico-cirurgião, que, segundo me informou o poeta Madhav Borcar, fabricara um aparelho electrocardiograma, para uso próprio.
[xiii] Uma das aldeias do concelho das Ilhas, a qual deu guarida à frota de Afonso de Albuquerque.
[xiv] Um dos mais eminentes governadores da antiga Índia Portuguesa, no período de 1938-45
[xv] Na altura, situava-se na Rua Heróis de 5 de outubro, hoje Rua Atmarama Borcar.
[xvi] Agente da Polícia, transferido de Goa por ordem do juiz Severino Balula.
[xvii] Fundado como Éden Cinema, passou a ser denominado Cine-Teatro Nacional em 1933.
[xviii] Situado na antiga Praça das Sete Janelas, depois conhecida como Largo Afonso de Albuquerque.
[xix] Fundada em 1832, com o nome de Pública Livraria, passando ultimamente a ser denominada Biblioteca Vasco da Gama, ora Krishnadas Shama Central Library, transferida para a nova urbanização do Pattó.
[xx] Doce de tipo bobina suculenta
[xxi] Moeda indiana
[xxii] Talvez se refere ao professor José Egídio Fidelis Frutuoso de Souza, de Pilerne.
[xxiii] Bairro da aldeia de Verém, do concelho de Bardez, que se situa na banda norte do rio Mandovi.
[xxiv] Aldeia do concelho de Pondá, um dos portos de navegação fluvial onde a lancha Pangim-Sanvordém fazia escala e onde descarregavam os patamaris vindos do Canará e de outros lugares.
(Publicado na Revista da Casa de Goa, https://casadegoa.org/revista/ii-serie-n-o-19-novembro-dezembro-de-2022/
Série II, No. 19, Novembro-Dezembro de 2022)
Uma história bem linda sobre os velhos tempos que já lá vão. Uma leitura obrigatória pela sua beleza. Muito obrigado.