Conto de autoria de Willy Goes | Traduzido do concani, por Óscar de Noronha*

“Ó burro, pense um bocadinho, seu animal! Ó seu búfalo, faça uso do seu bom-senso, se é que lhe resta algo! Ó seu boi, estão a desmanchar-se todas as propostas de casamento que a sua irmã recebe. E sabe quem é a causa disso? Você!” disse a mãe ao Brikston, dando-lhe um forte puxão de orelhas.

Brikston reagiu com tanta raiva, difícil até de imaginar. E por quê? Não porque tivesse sido chamado burro ou boi, mas porque a mãe lhe deu um puxão de orelhas.

“Não sou rapazola de dez anos, para estar assim a dar-me um puxão de orelha,” disse o filho.

Brikston tinha vinte e oito anos… não se sabendo se se devia considerá-lo moço ou homem. Era bem instruído, mas a sua bebedeira lhe estava a dar cabo da vida. Era dono de um táxi, mas em vez de ele o conduzir, para melhores lucros, deixando o táxi a cargo de um motorista, ficando ele o dia todo sentado a beber na taverna. Este não dava conta do dinheiro ganho; e, por sua vez, o dono contentava-se com a receita desde que lhe assegurasse a sua garrafa.

“Ó mãe, com esse forte puxão de orelha, agitou a minha cabeça e me causou muita raiva! Por isso, pare de falar, antes que eu expluda como um vulcão,” disse em tom de ameaça.

“Ó, você e a sua raiva, meto-os numa lata. Ora, você é bêbado. Não temos medo da cobra feita de folíolo nem da fúria de um bêbado. Oiça agora o que eu lhe tenho a dizer. A sua irmã recebeu uma proposta de casamento. O noivo é empregado do Estado. São quatro irmãos; e este é o mais novo. São três rapazes e uma rapariga. A irmã é tikli – nasceu após três rapazes. Os dois mais velhos já são casados. O noivo está resolvido a não casar enquanto não case a sua irmã,” disse a mãe a Brikston.

“Ó meu Deus! Então, por ser tiklém, esta coitada vai ficar solteira. Ninguém casará com ela; nunca se realizará o seu casamento nem o do irmão. Rejeite a proposta, e veremos outro noivo para a nossa Florishka,” sentenciou o Brikston, como se não houvesse dificuldade alguma em se achar noivos.

“Ó seu boi, quem vai achar outro noivo? Porventura, estarão eles à venda no mercado? A família convidou-nos a ir hoje à sua casa. Diz que enquanto a irmã não achar noivo, ele quer ficar seguro de noiva. Eu estou já velha, é sua responsabilidade casar a sua irmã. Vá com ela à casa do rapaz,” ordenou-lhe a mãe, acrescentando: “E não se embebede. Se não, pode ele rejeitá-la por ser irmã de bêbado. É o que tem sucedido em casos desses.”

“Bom, farei como a mãe quer. Vou levar a Florisha à casa dessa gente; e também verei se a irmã do rapaz encontra noivo,” disse Brikston, tomando sobre si a responsabilidade de casar a irmã.

Brikston e Florishka chegaram à casa do potencial noivo. Foram bem recebidos, sentaram-se e estiveram a conversar. Stanzar, o noivo, era funcionário público do Upper Division Clerk – UDC. Não tinha vícios de fumar nem beber. Pela conversa, via-se claramente que Stanzar se simpatizara com Florishka. A sua irmã constituía o único impedimento: ele não casaria antes de ela se casar.

“Onde está a sua irmã? Podemos conhecê-la antes de partirmos?” perguntou Brikston a Stanzar.

“Sem dúvida, não deixem de falar com ela antes de partir, e vejam se lhe acham noivo. Mas só vos previno: ela é tiklém: nasceu a seguir a três irmãos,” explicou Stanzar. “Trishka… Trishka, anda cá.”

Vindo ao encontro dos hóspedes, Trishka cumprimentou-os com uma risada. Era bem-parecida, de tez clara, de estatura mediana. Tinha sempre um riso na cara e porte jeitoso. Era de encher a vista. Logo que a viu, Brikston ficou estupefacto, preso ao seu lugar, porém, como se a levitar. Dentro do seu peito, o coração palpitava sem parar.

“É esta a sua irmã? Como é seu nome?” perguntou Brikston, embora apenas há uns momentos Stanzar a tivesse chamado pelo nome.

“Trishka. O meu nome é Trishka. E o seu?” perguntou suavemente.

Ouvindo essa voz tão doce, Brikston levantou-se e, aproximando-se da Trishka, disse, estendendo-lhe a mão: “O meu nome é Brikston. How do you do?

“Nice name. I am fine, thank you.” respondeu Trishka, apertando a mão.

Após mais dois dedos de conversa, Brikston levantou-se, passou uma vista de olhos por todos, e dando uns passos em direcção de Stanzar, despediu-se com um aperto de mão.

“Não sei se você gostou ou não da minha irmã, e nem me preocupo com isso. O facto é que gostei da sua irmã, Trishka. Poderíamos conversar mais sobre o assunto, o mais cedo possível, em minha casa. Por hoje é só. Vamos embora. Mog asum di.” E dito isto, partiram.

“O quê, seu bêbado! Você deu a palavra a essa tiklém? Antes disso, devia pelo menos consultar-me, seu animal! Não sabia que ela é tiklém? Quem se casa com uma tiklém?! Uma vez boi, sempre boi.”

Dito isso, a mãe de Brikston ia dar-lhe um puxão de orelha, quando ele, segurando a sua mão, impediu-a.

“Diga o que quiser, mas não me puxe a orelha,” disse Brikston terminantemente à mãe, apontando o dedo no ar. “Isso de tiklém-biklém não me interessa. É tiklém não por culpa própria! Coitada, nasceu depois de três irmãos. Que mal há nisso? Não presto atenção a essas superstições. Se isso de ser tiklém-biklém lhe interessa, isso é lá consigo. Vou casar-me com Trishka, and that is final!” disse Brikston firmemente.

“Tens alguma coisa a dizer, querida, a respeito da decisão do nosso bêbado?” perguntou a mãe, dirigindo-se à Florishka.

“Mãe, em primeiro lugar, pára de lhe chamar bêbado, boi, burro… Tu mesmo lhe deste o nome de Brikston, então porque lhe chamas de bêbado, boi, burro…. Quanto mais lhe chamares de bêbado, mais ele beberá. Chama-lhe pelo nome próprio, com carinho, e vê lá como ele vai mudar. Em segundo lugar, já que ele escolheu noiva, deixa-o casar com a rapariga. Isso de tiklém-biklém é cantiga.”

É claro que a mãe não gostou do que ouvira da boca de sua filha Florishka.

“Já percebi. Disse o rapaz não casará sem que a irmã fique arrumada: é por isso que tu estás a apoiar o teu irmão! Se por casar com a tiklém lhe vier a acontecer algo, seja a ele ou a nós, serás tu responsável. Percebeste?” disse a mãe, furiosa.

Correram os dias no meio dessa polémica, mas Brikston, sempre intransigente, casou com Trishka. Um mês antes, haviam casado os respectivos irmãos, Florishka e Stanzar.

O casamento de Brikston com a tiklém provocou grandes prejuízos a muitos co-aldeãos, ou seja, às tavernas, pois, Brikston parou de se embriagar e nem sequer suportava o cheiro a álcool. Mais, ficou desempregado o motorista do táxi, pois Brikston tomara-lhe as rédeas, vindo a ganhar rios de dinheiro. Aos poucos, teve meios para adquirir mais dois carros de praça, de modo que, em três anos de casado, já tinha três carros em casa, um conduzido por ele próprio e os outros dois entregues a motoristas da sua confiança. Estes prestavam contas regularmente. Além disso, Brikston consertou a sua casa e investiu dinheiro no banco. E assim se tapou a boca da mãe.

Ao fim de cinco anos de casamento, o casal tinha já três filhos. E estando grávida pela quarta vez, a mãe de Brikston aguardava a sua hora, ela que há tantos anos esperava que lhes viesse algum azar por via da tiklém. Efectivamente, nasceu-lhes uma menina, uma nova tiklém.

“Já viu isto? Já lhe tinha prevenido para não casar com a tiklém. Veja como a tiklém nos trouxe uma nova tiklém, como não podia deixar de ser… e quem casará com ela?” – desafiou a mãe ao Brikston.

“Ó mãe, esta criança, coitadinha, acaba de nascer. Quando ela crescer e estiver na idade de casar, encontrará um outro como eu; e tal como a presente tiklém me trouxe grande felicidade, também esta nossa fará o mesmo. Entretanto, a mãe faça votos para que chegue a ver a felicidade da recém-nascida.”

 * Nota do Tradutor: Embora a língua concani modernamente se escreva sem acentos ortográficos, vai acentuada a palavra tiklém só para indicar a pronúncia adequada aos leitores portugueses.

Sobre o Autor 

Willy Goes (1963-) é contista e autor de nove livros, sete em concani e dois em inglês. Actualmente é o Director do Goa College of Art. Foi membro do Conselho Consultivo do Concani na Sahitya Akademi, Nova Delhi. Apresentou trabalhos em seminários e ganhou prémios pela escrita criativa e fotografia.

Publicado na Revista da Casa de Goa (Lisboa), Série II, No. 23, Julho-Agosto de 2023, pp. 57-62  https://rb.gy/8qj52

Ligeiramente editado neste blogue.

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