Três poemas de R. V. Pandit

À espera de Rama

As minas
Fizeram de Goa
Não sei o quê.
As pedras 
Em ouro transformadas?
Não sei.
Mas uma coisa eu sei –
Homens, que anos atrás
Eram de oiro, 
Hoje estão feitos pedras
Como a Ahilia[1]
À espera de Rama!!

Inimigos pela língua?

Tu e eu
Irmãos somos…
Inimigos tornámos23
Por causa da língua!

O Goês

Homem de Goa
Tu és como a jaca
Com uma coroa de espinhos
Como Jesus Cristo.
Mas por dentro são bagos
Cheios de mel, de amor.
Tu és assim! Tu és assim
Ó homem de Goa.

A poesia de Raghunath Vishnu Pandit (1917-1990), conhecido como R.V. Pandit, é caracterizada pelo uso do verso livre; e, pela objectividade no tratamento do assunto e economia da linguagem, torna-se, às vezes, aforística.

Escreveu os seguintes livros de poesia: Ailem toxem gailem [Cantei tal como senti]; Mhojem utor gavddiachem [Falo tal como um gauddi[2]]; Urtolem tem rup dhortolem [Formas que ficam]; Dhortorechem kavan [Cântico da terra]; Chondravoll [A Lua][3]; e, mais tarde, Reventlim Pavlam [Passos na areia], Lharam [Ondas], além de livros de prosa. A sua obra demonstra entranhado amor a Goa e marcado interesse pelo bem-estar dos extractos mais desfavorecidos da sociedade goesa.

Dedicando-se ao estudo do folclore, publicou dois volumes de histórias tradicionais concanins – Gôdd gôdd kanniô [Contos doces] – e uma versão para crianças de alguns episódios do Ramaiana e Mahabarata. Em 1975, o seu livro Doriá Gazota [O Rugir do Mar] ganhou o prémio da Sahitya Akademi (Academia indiana de Letras). Em 1982, foi recipiendário do galardão Padma Shri do Governo da Índia.

Como fotógrafo amador, Pandit captou de forma excepcional a vida de Gandhi, de quem era sequaz. Foi sócio efectivo do Instituto Menezes Bragança, em Goa, e recebeu o grau de doutor honoris causa de três universidades.[4] É um dos poucos poetas da língua concani e marata com obras traduzidas em português e inglês.[5]

Segundo A Literatura Indo-Portuguesa,[6] de Vimala Devi e Manuel de Seabra, os poemas de Pandit eram vertidos para português pelo próprio; no entanto, todos que encontrámos são da tradução de Mucunda Quelecar[7]; e a tradução inglesa da autoria de Thomas Gay[8]. Na transliteração para caracteres romanos dos seus poemas, que escrevia em devanagárico, teve a ajuda do jornalista Felício Cardoso.[9] E a tradução livre transforma-nos todos em novos poemas.

As três peças que figuram acima tratam de temas candentes do período pós-1961:

O primeiro poema refere-se à transformação da vivência goesa na sequência da exploração das minas de ferro e manganês, a que se procedeu, vigorosamente, a partir dos anos sessenta do século XX. Só após algumas décadas é que o território se apercebeu das nefastas consequências da actividade mineira.

O segundo é um poemeto com um quê de autobiográfico, pois no movimento que precedeu ao histórico Opinion Poll (escrutínio da opinião), em 1967, Pandit bateu-se pela integração de Goa no estado vizinho do Maharashtra de língua oficial marata. Foi por isso hostilizado por escritores goeses da língua concani que eram a favor de estatuto político independente para Goa dentro da União Indiana.[10] Essa rotura com os “irmãos” do idioma goês ter-lhe-ia inspirado esse poemeto.

O terceiro poema é o seu cântico de louvor à índole do povo goês.

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[1] Ahilia petrificou-se quando amaldiçoada pelo marido Gautama, tendo mais tarde mudado de estado com um simples toque dos pés de Rama, príncipe de Ayodhya e herói do poema épico Ramaiana.

[2] Os gauddi, considerados os mais antigos habitantes de Goa, provêm da raça proto-australóide.

[3] Edições de autor, publicadas no mesmo dia (26 de janeiro de 1963), em Goa.

[4] Embora a sua habilitação académica não passasse do bacharelato em Letras (B.A.), recebeu esse reconhecimento de universidades filipina, brasileira e americana (Cf. António Pereira, The Makers of Konkani Literature (1982), p. 230; Konkani Vishvakosh, Vol. II, p. 629).

[5] Voices of Peace (Goa, 1967) e The Tamarind Leaf (Goa, 1967). Os seus poemas em tradução portuguesa estão compilados nos n.ºs 119 (1978), 122, 123 (1979) do Boletim do Instituto Menezes Bragança.

[6] Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1971.

[7] Segundo informações prestadas por Madhav Borcar, poeta goês da língua concani, Mucunda Quelecar (1904-?) (vulgo Mukund[a] Kelekar) tinha conhecimentos profundos do concanim, português, francês, latim e inglês. Escrevia regularmente para O Heraldo e A Vida e, em inglês, para The Navhind Times. Foi professor de português e de matemática num liceu particular em Pangim. Traduziu para o concani os contos de Stefan Zweig.

[8] Thomas Gay, de nome completo, Thomas Edward Waterfield Gay (1905-2001) (sendo este último o apelido de sua mãe, adoptado em 1955), alto funcionário do Quadro dos serviços civis britânicos na Índia (Indian Civil Services, ICS). Segundo nos disse Borcar, Gay limava os poemas traduzidos por Pandit em inglês.

[9] Informação prestada por Borcar. O contista e jornalista Felício Cardoso (1932-2004) lançou as bases da nova sintaxe do concani, no período do pós-1961. O seu jornal Sot fundiu-se com o diário A Vida, formando, mais tarde, o jornal Divtti, de que Cardoso foi director associado.

[10] Informação prestada pelo padre Mousinho de Ataíde.


Reconhecimento: Publicado na Revista da Casa de Goa, Lisboa, Série II, No. 13, Novembro-Dezembro de 2021

https://casadegoaorg.files.wordpress.com/2022/01/revista-da-casa-de-goa-ii-serie-n13-novembro-dezembro-de-2021.pdf


O único poema de Adeodato Barreto, em concani

Bekaryanc

Ganthá dongrá patlean
Súryá uttún yetá,
Aplyá bangr­á-kensán
Dogdogtá.

Sabar bangrá-zori
Tujim kirnam distái:
Ekuch durboryanchi
Guirestái.

Zaityá fudlyá tempá
Amché agé-ponngé
Taca “Suryá-Devá”
Munntalé:

Doryá-laguim vossún
Fantyá-pará vellar
Kori tokli moddun,
Nomoscar:

“Zoxim pilám daktim
Combiê-pakám-khalá
Zoxém avoi laguim
Daktém balloc nidta,

“Toxém amim”, ballocám,
tugê cuxic tencun
guetão adar amcám
Ani gunn.

Côro

Goenché tsakór, uttái!
Sorgar uzvadd zaló!
Súryá uttún ailó!
Báir sorái!

Tumchêo cuddolyô gheún
Bollán dornir honddyái
Tanchê torçadi korún
Handar maryái.

Amchyá bekaryanchá
razvotech’vell ailó:
Bekari, ubé ráum-yá
Sounsar amchó!

 

Aos desempregados

Por trás da cordilheira
Nasce o sol, e derrama
A sua barba soalheira
Em flama.

Fios e fios d’ouro
Formam a tua radiação:
Dos pobres, o tesouro
Da salvação.

Em tempos que já lá vão,
Os nossos antepassados
Ao “Deus-Sol” então
Vinculados:

Indo ao pé do mar,
Ao raiar o dia,
Diziam, ao dobrar
Em cortesia:

“Tal como o pintinho
Sob as asas da galinha,
Dorme o menininho
nos braços da mãezinha,

“Também nós,” filhotes,
A ti aconchegados
Fruímos dos teus dotes
E demais predicados.

Côro

Erga-se, ó braçal goês!
Já se fez luz no céu!
O sol rompeu o véu!
P’ra frente, sem revés!

Com as suas enxadas
Furem o solo com ardor;
Façam delas espadas,
Ombreiem-nas com vigor.

Dos nossos pés-rapados
Chegou a hora prima:
De pé, ó desempregados,
O mundo nos arrima!

(Tradução de Óscar de Noronha, Setembro de 2021)

O único poema de Adeodato Barreto, em concani

Numa casual leitura da história da literatura concani[1] fui surpreendido pelo poema ‘Bekaryanc’, de Adeodato Barreto (1905-1937),[2] porventura o único escrito em concani por essa figura ímpar da literatura luso-goesa e o qual consta d’O Livro da Vida.[3]

Porquê em concani – aos 30 anos de idade – e em Portugal?

Não consta que Adeodato Barreto tenha tido actividade literária nos primeiros 18 anos da sua vida que passou em Goa, então Índia Portuguesa. No entanto, com redobrada coragem e consciência, conjuntamente com alguns colegas goeses em Coimbra, não só criou o Partido Nacionalista Indiano e o Instituto Indiano anexo à Faculdade de Letras, mas também fundou o periódico Índia Nova[4] e as edições Swatwa. A sua actividade visava a propaganda do humanismo e civilização oriental, cujos elementos o grupo aprendera com intelectuais europeus, mormente Romain Rolland e Sylvain Lévi.

Adeodato Barreto exerceu, sucessivamente, as funções de professor e de escrivão de Direito em Aljustrel. Teve iniciativas no ramo de instrução (inclusive um curso de Esperanto); fundou e dirigiu o semanário Círculo, a que se associaram vários escritores do País; e foi assíduo colaborador dos jornais Seara Nova e Diabo. Reuniu a sua prosa jornalística em Civilização Hindu. Autodomínio, tolerância, humanismo, síntese (Lisboa: Ed. de Seara Nova, 1935); e, postumamente, foi publicado O Livro da Vida. Cânticos Indianos (Nova Goa: Tip. Sadananda, 1940)[5].

Sendo esse o ideário do grupo luso-goês, era natural que quisessem salientar a língua e cultura vernácula de Goa. É o que se deduz do seguinte apelo publicado no referido periódico: “Aos nossos leitores que tenham a rara felicidade de saber escrever em concani, pedimos especialmente o favor de colaborarem nesta página que será consagrada exclusivamente à defesa e utilização culta dessa língua.”[6]

Ora, esse plano não vingou, pois o periódico parecia ter mais promotores, aliás bem-intencionados, do que colaboradores proficientes na língua concani! É que os goeses, já desde o período pré-português, haviam sobremaneira usado o concani como veículo de comunicação oral, sendo o marata a língua cultural dos hindus de Goa, tal como o foi, mais tarde, o idioma luso, em relação à elite católica.[7] E se foi somente por gosto de escrever na sua língua materna que Adeodato Barreto se lançou em concani, fê-lo seis anos depois de fechar o Índia Nova, e não constando que tenha tido intenções de continuar a fazê-lo.

Como língua nativa da estreita faixa costeira do Concão, o concani tem diversos dialectos e a fortuna de ser expresso em caracteres romanos, devanagáricos, canareses, malaialeses e perso-árabes. Ora, ‘Bekaryanc’ aparece num dialecto misto de salcetano e bardezano e em caracteres romanos; não emprega a ortografia padronizada, pois, pelo menos no romano, ela não existia na altura; e, sem se perder em preciosismo vocabular, apresenta versificação mais ou menos regular.[8] O Poeta, na sua tentativa de remediar uma carência histórica e melhor realçar a identidade luso-goesa, demonstra um entranhado amor à terra e ao povo.

Não é portanto sem razão que dele diz Ruy Sant’Elmo, no prefácio a O Livro da Vida: “Longe da Índia, onde nasceu, em contacto com um meio europeu, jamais perdeu as características, sentimentais e mentais, que constituíam o seu ethos originário. Adeodato Barreto permaneceu sempre, no fundo, um oriental. A ausência do torrão, embora num país onde era estimado, onde triunfou, e onde constituíu família, tinha para ele o ressaibo amargo de um exílio forçado.”[9]

Será que foi só a partir desse “exílio forçado” que Adeodato Barreto se apercebeu da profunda subalternidade da língua concani e da classe operária na sua terra natal? Embora a sua família em Goa gozasse de privilégios de casta e classe, Adeodato Barreto, no poema ‘Bekaryanc’, ecoa o célebre grito marxiano dirigido ao proletariado. Tê-lo-ia escrito nessa língua para que o povo goês o pudesse ler e entender sem intermediários? Pelos vistos, dois anos antes de a morte o silenciar, Adeodato Barreto sonhou em dar voz aos oprimidos da Índia, como, aliás, de certa maneira o fizera também em relação aos habitantes da sua terra de adopção.

Evidentemente, ‘Bekaryanc’ não pretende ser uma “obra de arte”, mas um simples “desabafo de alma”,[10] como, aliás, diz Adeodato Barreto falando de toda a sua obra poética reunida n’O Livro da Vida. Volvendo, pois, os olhos saudosos a Goa, deu um último grito, em concani, antes do seu último suspiro, em Portugal.

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[1] Pereira, José. Literary Konkani: a Brief History. Panaji: Goa Konkani Akademi, 1992, p. 36; Sardesai, ManoharRai. A History of Konkani Literature. New Delhi: Sahitya Akademi, 2000, p. 139.

[2] De nome completo Júlio Francisco António Adeodato Barreto.

[3] Agradeço à Doutora Sandra de Ataíde Lobo o ter-me facultado este importante pormenor.

[4] Tinha como colaboradores principais José Paulo Teles e Telo de Mascarenhas, ambos estudantes de Direito.

[5] Veja-se também Civilização Hindu: seguido de O Livro da Vida (Cânticos Indianos). Lisboa: Hugin Editores, 2000.

[6] Índia Nova, n.º 1, p. 4

[7] Pelo menos no século XVI, o grande período das conversões religiosas, os portugueses reabilitaram a língua, estudando-a cientificamente, ou seja, confeccionando gramáticas e dicionários, obras que nenhuma outra língua indiana possuía na altura.

[8] O que nem sempre sucede com os seus poemas em português.

[9] Cf. O Livro da Vida. Nova Goa: Edições Swatva, 1940, [p. 8]

[10] In “Proémio”, [p. 13], escrito sob o pseudónimo Forçu Deodat, respectivamente, corruptelas de Francisco e do nome hindu Devdatt.

(In Revista da Casa de Goa, II Série – No. 12 Sep-Oct 2021, pp. 46-48)