Nas décadas de 60 e 70 do século XX, a cidade de Pangim era a imagem da calma e doçura, simplicidade e decoro. Estendia-se da Rua de Ourém ao Hospital Militar (na direcção leste-oeste) e da avenida marginal ao Altinho e Batulém (na linha norte-sul). Como jardim à beira-mar plantado, a quem o suave Mandovi pautava o ritmo da vida, Pangim tinha uma identidade própria e um encanto muito seu.

Vivia eu no coração de Pangim, ao pé do antigo Palácio do Idalcão e sob o olhar hipnótico do Abade Faria. Raiava o nosso dia com o chilrear dos pássaros, seguido da sonora sereia do barco de Bombaim a atracar no cais da Alfândega. A essa hora, o vaivém apressado da multidão, a algazarra dos bagageiros e a buzina dos táxis na Avenida Vasco da Gama (hoje D. B. Marg) eram um chamariz para uma boa parte dos 40.000 pangimnenses ainda envoltos em sono; um impulso matinal para as suas tarefas, sobretudo a escolar.

Era como se o frenesi da metrópole indiana tivesse acabado de desembarcar na capital goesa! Essa onda pressurosa propagava-se um pouco por toda a parte, a começar pela Avenida Dom João de Castro e a Rua Afonso de Albuquerque (ora M. G. Road), as principais artérias, dominadas pela burocracia e pelo comércio. Com a partida daquele barco, no meio da manhã, a cidade voltava à calmaria; almoçava e dormia a sesta, e pelas 4,00 horas retomava a batalha quotidiana que só terminava por volta das 8,00 da noite.

Uma vivência orgânica, não muito diferente da do campo! À devida hora vinha à porta o pão e o peixe fresco; iam às compras os empregados domésticos, que se prezavam de ser íntegros, temendo não tanto a polícia como a Deus! O trânsito era ligeiro – motocicletas, bicicletas, até carroças, e automóveis, do popular Volkswagen ao luxuoso Cadillac. Estes eram os últimos abencerragens da bonança que resultara, paradoxalmente, do Bloqueio Económico de 1955, e ora simbolizavam o nosso cosmopolitismo.

Disse um escritor japonês que Pangim era a “most unIndian of all Indian cities.” Referia-se certamente à tradicional arquitectura indo-portuguesa, desprovida de arranha-céus e da imundície e do caos que caracterizavam os centros urbanos do subcontinente. Mas teria ele dado conta da arquitectura espiritual do povo? Este não era de grandes ambições e vivia numa mediania. O roubo era raro, e raríssimo o homicídio ou o suicídio. Não havia indícios de sectarismo ou de violência, pois reinava a consciência e a benevolência, ou aquilo a que chamamos munisponn: se à porta humildemente batesse alguém, sentava-se à mesa com a gente – como canta o fado; e no conforto pobrezinho do lar havia fartura de carinho, e bastava pouco para alegrar a existência do citadino.

Pois é, a cidadezinha daquela época tinha um só diário em português (O Heraldo) e em inglês (The Navhind Times); uma só emissora (a All India Radio); um só salão (o do Instituto Menezes Bragança), onde actuava a única academia de música; um único hotel de categoria (o histórico Mandovi); uma só loja de gelados (o Esquimó); um só restaurante sul-indiano (o Shanbhag); um único hospital geral (o da Escola Médica); um único cine-teatro (o Nacional); uma só livraria (a Singbal); uma única biblioteca de fôlego (a Central); uma só grande praça pública (o Azad Maidan); um só campo de jogos público (no Campal); um só amplo jardim (o Garcia de Orta), onde, à tarde, convergiam crianças e adultos, ficando aqueles a saltitar pelos canteiros e estes a conversar amenamente num canto.

Desse jardim guardo várias memórias: a da música executada no seu artístico coreto e a dos slogans – “Tujem mot konnank? – Don panank!” – que eu ingenuamente gritava, nas vésperas do Opinion Poll, em 1967. Lembro-me dos cafés e bares em redor e do jornal em cuja Redacção se ouvia um aflitivo dize-tu-direi-eu, nem por isso resolvendo os problemas da carestia e escassez, da pobreza e embriaguez, estas comuns, por sinal, no bairro pitorescamente denominado Tambddi Mati (Terra Vermelha), tanto por falta de asfalto nas ruelas como pelas lampadazinhas vermelhas nos alpendres!

Enfim, Pangim não era nenhum jardim de virtudes. Até pensara em mudar de cidade, por não suportar a insularidade e me sentir everybody’s business; mas em vez disso mudei de ideia, por recear que entretanto a cidade da minha infância se transformasse num pequeno Bombaim, e nós, em nobody’s business! Mas não havia remédio; a cidade estava já em franca expansão: as casas cediam o lugar a blocos de apartamentos; era construída uma ponte sobre o Mandovi e uma praça de automóveis no pântano do Pattó. Por outro lado, estava incompleta a rede de esgotos; havia falhas na electricidade, e era racionada a água canalizada. O ar era puro; mas ai que, na monção, Pangim de repente era Veneza!…

Ora, fui aprendendo a amar a cidade e a gente. Éramos poucos, éramos irmãos – e saudáveis as relações entre os vizinhos, independentemente dos seus credos. Naqueles tempos, os cavalheiros tiravam o chapéu às senhoras e paravam para dois dedos de conversa! Os baptizados, aniversários e funerais eram eventos de vulto. Não havia televisão; para dissolver o tédio bastava um passeio pela praia do Miramar ou de goddia-gaddi até ao Campal, ao pôr-do-sol. O arraial nas Fontaínhas, o desfile do Carnaval e os bailes nos clubes Nacional e Vasco da Gama vinham a seu tempo. Dir-se-ia o mesmo da Via Sacra; da procissão das velas que do Paço Patriarcal descia até ao ex-libris da igreja matriz; e das novenas e festas religiosas. De tudo isso nascia o espírito de família e a alegria de viver em Pangim.

No afrouxar forçado dos meses da covid-19, voltei a descobrir o rosto da minha cidade. Se em tempos nos faltavam coisas que os outros tinham em abundância, hoje, sentindo novamente aquela calma e doçura, simplicidade e decoro, vejo que nos não faltara nada…. Não admira, pois, que Pangim tivesse sido sempre a menina dos olhos de todos os que se prezavam de ser goeses!

Foto de Pangim, gentilmente cedida por Willy Goes

Publicado na secção portuguesa do magazine dominical do diário Herald