(Um conto de Jess Fernandes, traduzido do concani por Óscar de Noronha)

História que se passou anteontem à tarde. Veio visitar-me um amigo muito íntimo: Cirilo! Deixara Goa há muitos anos, passando a viver no estrangeiro, onde casou e fez a vida. Como diz o ditado, estamos aí onde nos enchemos a papinha!

O rapaz era muito bem instruído. Pretendia trabalhar na sua terra, fazendo algo com as suas próprias mãos. Mas aqui nunca lhe apreciaram os préstimos. Pelo contrário, foi esmagado tal qual uma mosca que pousa sobre a mesa.

Quando partia para o estrangeiro, choraram muito os seus pais. Era seu único filho e queriam-no sempre consigo, diante dos seus olhos.

Depois de o filho partir, o pai, cismando em como o havia educado e a razão pela qual ele fora embora, fechou os olhos. Os seus últimos sacramentos administrei-lhos eu, José, como se tratasse de meu pai.

Cirilo voltou após uns anos de ausência. A mãe não podia conter a sua alegria. E viera com muito dinheiro.

Pascu, pai do Cirilo, fora manducar[i]. O terreno à volta da casa, o qual não pudera comprar, comprou-o Cirilo, com o suor do seu rosto. Consertou a casa; e a várzea que a mãe cultivava comprou-a ao mesmo proprietário, além dum pequeno valado que lhe pertencia: fê-lo porque a esse prédio de dois mil e quinhentos metros quadrados estavam ligadas muitas das nossas memórias. Ficávamos aí a brincar, fazendo armadilhas para apanhar passarinhos; e pescávamos no riacho que corria aí perto. Era aí que resolvíamos os nossos grandes e pequenos problemas, partilhando as nossas dores e alegrias. Lá no valado não medravam grandes árvores frutíferas, excepto as seis de mirabolão[ii]. As suas nozes, nunca as colheu o proprietário: comiam-nas os transeuntes. Por isso, fora baptizado de ‘valado dos transeuntes’.

Na verdade, estava eu de olho nesse valado. E disso sabia bem o Cirilo. Por isso, antes de falar ao proprietário, consultou-me sobre o assunto. Mas eu reflectidamente disse que não, pois a bagatela que ganhava mal dava para fazer face às despesas. E que ocupação a minha! A de simples amanuense. Também meu pai o era, sob o regime português em Goa; e após a sua morte consegui esse lugar, para o qual o regedor da aldeia, grande amigo do meu pai, propusera o meu nome ao Governo.

A mãe de Cirilo fez-se dona da várzea e do valado, porém, poucos anos viveu a desfrutar desse papel. Um certo dia, partiu para onde estava o seu marido na eternidade, e deixando sozinho o filho Cirilo.

Após a morte da mãe e até o momento em que Cirilo continuou em Goa, a minha mãe tratou-lhe como filho. E este, quando estava prestes a partir para o estrangeiro, abraçou a minha mãe, e, muito comovido, disse: ‘Mãe, como é que lhe vou pagar todos esses favores? Se o José tivesse uma irmã, far-me-ia seu cunhado. Mas também ele, coitado, é filho único, tal como eu!’

Aquele desabafo tendo cortado o coração à minha mãe, também chorou amargamente. Puxou-lhe para o seu peito e, afagando a sua face, disse: ‘Porque querias ser seu cunhado, meu filho? Tu és irmão dele e meu filho mais novo, querido!’

Nós os três passámos uns momentos a fitar um ao outro e debulhámo-nos em pranto.

Antes de partir, o Cirilo confiou a sua várzea a um vizinho e a casa a um primo afastado, a quem pediu que arranjasse inquilino. Aliás, o Cirilo tencionava entregar tudo isso à minha mãe, porém, dada a distância de meia hora que separavam as nossas casas, reconheceu que isso não nos seria possível. Tínhamos uma única várzea e um só prédio ligado à casa. Para além de cuidar dos nossos bens, a minha mãe não tinha possibilidades de zelar pelos interesses do Cirilo.

Algum tempo depois de Cirilo ter saído Goa, a família do seu parente passou para essa casa. Escrevi a esse respeito ao Cirilo; e o parente fez o mesmo. Só de pensar que o seu primo iria olhar bem da casa, pois gastara oitenta mil rupias nas benfeitorias, encheu de satisfação o coração de Cirilo.

Esta história passou-se há quinze, ou mais, anos. Entretanto, Cirilo deu uma saltada até Goa e, sem pretensões, acabou por casar com uma prima direita minha. Um dia, disse a brincar à minha mãe: ‘Mãe, olhe que ganhei! Não só sou teu filho; até me casei com a filha da tua irmã. Portanto, tanto sou teu filho como teu genro.’[iii]

Nem sentimos que haviam passado esses dias de grande alegria. Terminadas as férias de dois meses, Cirilo seguiu para o estrangeiro.

Passaram mais uns anos. Nasceram-lhe aí um rapaz e uma rapariga. Era amorosa a sua vida de família e corria-lhe tudo muito bem.

No mês de Natal, e no dia em que o céu azul de Goa viu, orgulhosamente, nascer o sol da liberdade, o seu coração pulou de alegria. Cirilo reuniu os goeses da diáspora e dedicou-lhes uma festa.

Pensou que Goa e os goeses veriam melhores dias. De quinze em quinze dias escrevia-me a pedir informações sobre como andavam as coisas em Goa, onde não tinha outros interesses senão a sua quinta, a sua várzea e a minha pessoa.

Um dia, foram promulgadas em Goa as leis do inquilinato e do mundcarato[iv], as quais mudaram de todo o modo da vida goês. De uma pancada, reduziram os pequenos proprietários a mendigos de rua; e aqueles que o senhorio havia abrigado no seu prédio tornaram-se donos deste. O caso do latifundiário é outro cantar: Deus sabe como eles adquiriram esses prédios rústicos de grande extensão! Mas lá porque foi incorrecto um indivíduo não justifica que seja punida toda a sua classe.

Lembro-me do que se passou no dia em que apareceram as tais leis. Os meus dois manducares colheram os cocos do palmeiral e venderam-nos sem minha licença. E depois de gozar bem das lanhas, espalharam as suas cascas por todo o lado. Quando lhes arguí, os homens teceram uma filosofia, citando as novas leis, como falsos proprietários de palmo e meio. Depois de me queixar contra eles à polícia, foram manietados. Estiveram presos por quatro dias; foi-lhe sacudido o pó dos seus costados, e foram libertados: esta é outra história!

Logo que Cirilo teve conhecimento da nova legislação, regressou a Goa! Mas deixou-se cativar com umas historietas tanto pelo cultivador da várzea como pelo ocupante da sua casa.

Um dia, quando passei pelo escritório dum primo, apercebi-me das trafulhices do parente de Cirilo. Longe dele, um empregado dessa repartição contou-me umas anedotas. Informei o Cirilo e fiquei a aguardar a sua chegada.

Entretanto, tive de me deslocar de serviço até Delhi, onde demorei um mês e meio. Nesse interregno ouvi dizer que o parente consertara a casa. Quando a visitei após o meu retorno, notei que o homem, gastando rios de dinheiro, transformara a casa por completo. Explicou-me o parente que, como nunca havia pago renda ao Cirilo, empregara esse mesmo dinheiro nas benfeitorias.

Mesmo que com essas palavras parecesse decidido a levar tudo, fiquei com certas dúvidas. Dei um relato completo ao Cirilo, urgindo com ele que voltasse logo a Goa.

Cirilo chegou precisamente no dia em que estávamos, eu e a minha família, na vila de Mapuçá, a assistir a cerimónia do crisma do meu afilhado. Com umas poucas peças de roupa na maleta, saiu a dizer, ‘Vou a Pangim e volto amanhã.’ Quando voltámos à tardinha, tivemos notícias sobre Cirilo. Aguardei a sua chegada, até às 10 horas da noite. Ontem da manhã não fui ao serviço; também a minha mulher decidiu, de repente, ficar em casa, de licença.

Ontem, mais ou menos a um quarto para as seis da tarde, chegou Cirilo à nossa casa. Estava completamente fora de si. Olhando para o seu traje e o seu rosto apercebi-me de muita coisa, pois notei-o a lacrimar. E logo que me viu, derramou lágrimas abundantes. Sem dizer patavina, abraçou-me forte e chorámos os dois. Não foi preciso que me dissesse coisa alguma por palavras.

Depois de um grande silêncio, falou. Abriu o seu coração, ficando patente a agitação lá dentro de si: o cultivador da sua várzea tornara-se proprietário! Segundo as novas leis estatais, tinham sido marcados os preços por metro quadrado. Foi uma ninharia o preço que o prédio rústico obteve. Se o pagamento fosse feito de uma só vez, eram trinta e cinco poiçás por metro quadrado; quem o fizesse em prestações, pagava sessenta poiçás por metro quadrado. Ora, não era habitual achar nem sardinha nem arenque por trinta e cinco ou sessenta poiçás; porém, o manducar cultivador acha terreno, ou pelo menos a forma de pagar em prestações.

Uns anos antes, Cirilo comprara a mesma várzea por uma rupia o metro quadrado e depois de todos esses anos, qual o preço que cobrou? Receberia pelo menos os juros correspondentes ao dinheiro despendido? Hoje em dia, um agricultor possui ainda sete, ou até oito, várzeas; segundo a lei do mundcarato, a várzea do senhor passou para o manducar. A bem falar, o agricultor devia ter direito a certa várzea ou a uma só várzea, e ainda essa pertencente ao senhor com muitas várzeas.

Esse primo tornou-se dono da casa e prédio do Cirilo, tendo já registado os mesmos em seu nome, na Repartição de Agrimensura. Assim, o Cirilo ficou proibido de entrar na sua própria casa, que comprara com tanto esforço! Mal soube da vinda de Cirilo a Goa, o primo contractou uns brigões e capangas e postou-os à porta da casa. Cirilo sentiu-se ameaçado. O primo e um dos maltrapilhos haviam registado o valado dos transeuntes em seu nome. Promulgado o registo na agrimensura, o primo tornou-se dono, ficando claro que a papelada que havia enviado ao Cirilo era forjada. Daqui em diante, para conseguir algo, seria preciso subir e descer os degraus do tribunal… e a justiça, estava ela à mão? Só atravessando sete mares…

Com efeito, a lei expulsou um filho amado de Goa e do país. Sentia-se estrangeiro na sua própria terra…

Hoje, ao meio-dia, Cirilo recolheu num saco plástico um punhado de terra lá da sua várzea. Curvando-se, e com os olhos cheios de lágrimas, beijou o solo. Depois, despediu-se de todos e subiu para o avião, voo esse que pôs termo à sua relação com esta terra.… para sempre!

[i] Lavrador que mora, sob certas condições, no prédio rústico dum proprietário.

[ii] Anvalló, em concani.

[iii] Primos direitos são considerados ‘irmãos’, e daí Cirilo ter-se considerado irmão de José e filho da mãe deste.

[iv] O sistema relativo ao manducar.

Notas Biográficas 

Jess Fernandes, de nome completo Menino Jesus de Maria Fernandes, nasceu em 1941, em Quepém, Goa. Tirou o 7.֯ ano do Liceu e fez a carreira de paramédico nos Serviços de Saúde, em Goa. É poeta, contista e dramaturgo da língua concani, e autor de 38 livros. Traduziu em concani vários livros do Velho Testamento e espera publicar brevemente a sua autobiografia.

Reconhecimento

Publicado na Revista da Casa de Goa, Lisboa, Série II, No. 16, março-abril de 2022

https://acrobat.adobe.com/link/track?uri=urn:aaid:scds:US:bc60df78-7acf-3c04-a5a8-131b929b8977#pageNum=1