A Última Conversa com Percival Noronha

Numa tarde chuvosa (1 de Julho do ano passado), quando de súbito me lembrei do Sr. Percival Noronha[1], não hesitei em terminar a minha sesta dominical. Um distinto cavalheiro – culto, agradável, e que me estimava – daí a dias iria completar a bonita idade de 95 anos… Urgia, pois, falar com o grand old man de Pangim.

Quando liguei para a sua casa, ouvi logo um ‘Estou!’ inconfundível. Na linguagem do Sr. Percival, esse estar era o mesmo que estar disponível! ‘Pode o Óscar vir quando quiser’, disse com a amabilidade que o caracterizava. Estava sempre pronto para um papo, e desta vez seria como nunca dantes: radiodifundida na minha rubrica mensal, Renascença Goa… (https://www.youtube.com/watch?v=KRK2PimgTmo) Saí então rumo às Fontaínhas, acompanhado do meu irmão Orlando que trataria das fotos.

Era um prazer ir à residência do Sr. Percival (‘Ajenor’, nº E-426, à Rua Cunha Gonçalves). Também nos cruzámos, por centenas de vezes, em concertos, conferências, exposições de arte, e não menos em casamentos e funerais. Um senhor da velha guarda, era cumpridor dos seus deveres sociais e cívicos. Apesar da nossa diferença etária, a conversa corria como um rio de águas claras, pois o Sr. Percival era não só envolvente mas também apreciador dos méritos dos seus contemporâneos e estimulador dos talentos dos mais novos.

Por muito curioso que pareça, vi o Sr. Percival Noronha, pela primeira vez, no longínquo ano de 1969. Foi isso na sede do Governo, ou seja, no Palácio do Idalcão, a antiga residência oficial dos Vice-reis e governadores portugueses (1759-1918), o qual a partir de 1961 passara a denominar-se Secretariat. Aqui trabalhava também uma tia minha, Maria Zita da Veiga. E conservo a grata memória de o Sr. Percival nos convidar ao Café Real para o chá das cinco. Como o restaurante apinhado de gente, demorámos no seu Volkswagen Beetle, onde vieram chávenas de chá para os colegas e um refresco para o menino que os acompanhava!

Diga-se de passagem que eu admirava o seu automóvel, preto, parecendo sempre novo, tal como o seu proprietário. Este, sempre vestido de bush shirt ou camisa safari, percorria os cantos e recantos da cidade, que conhecia como a palma da sua mão. É que Percival e Pangim se pertenciam um ao outro: foi dos melhores cronistas da capital, do seu ethos e do seu ritmo, que descreveu em bela prosa.[2] E fê-lo com autoridade, mesmo porque presenciou nove décadas, ou seja, metade da história dessa urbanização,[3], de forma que hoje se torna difícil imaginar o nosso Pangim sem o Sr. Percival Noronha.

Cargos oficiais

Feitos os estudos liceais na capital, o Sr. Percival Noronha entrou para a administração pública, em 1947. Trabalhou, primeiro, nas Obras Públicas, passando depois para os Serviços da Estatística e Informação. Quando esta foi desagregada, o distinto professor e escritor António dos Mártires Lopes levou-o consigo para os novos Serviços de Turismo e Informação de que este acabava de ser nomeado chefe. O Sr. Percival nunca se esqueceu dos belos tempos do Liceu e do funcionalismo que passou sob a alçada directa desse seu antigo professor liceal: confessava que essa relação fora fundamental em nutrir a sua paixão pela história e cultura.

Quando se deu a mudança do regime politico, em Dezembro de 1961, o Sr. Percival era chefe-adjunto dos Serviços da Informação, reportando ao governador-geral Vassalo e Silva. Em Junho de 1980, a visita do simpático governador coincidiu com as comemorações do 4.º centenário da morte de Luís de Camões em Goa. Vinha a título pessoal, mas nem por isso a visita deixou de suscitar controvérsia.

Decorreu-se o pior da cena no Azad Maidan (‘Largo da Liberdade’), a antiga Praça Afonso de Albuquerque. Aqui, à certa distância, vi o antigo governante a ser interpelado por alegados actos de comissão e omissão do regime português em Goa.[4] O embaraçoso incidente atalhou-o o Sr. Percival Noronha, que, na qualidade de chefe de Protocolo do Território de Goa,[5] estava incumbido de acompanhar o ilustre visitante.

Antes dessa data, com a limitada bagagem de conhecimentos de inglês auferidos no Liceu, e língua essa que logo veio a dominar, o Sr. Percival Noronha ocupou outros cargos importantes na administração indiana. Foi sub-secretário das indústrias, minas, trabalho, saúde e turismo. Entre muitas outras iniciativas suas, os hospitais do Asilo em Mapuçá e o Hospício de Margão passaram a subordinar-se à Direcção de Saúde. Desenvolveu as zonas de Calangute, Colvá, Mayém e Farmagudi, e ideou os desfiles do Carnaval e Xigmó; teve papel preponderante no arruamento Campal-Miramar e na arborização do Parque Infantil; e foi um dos responsáveis pela realização da grande Feira Agrícola em 1970. Ora, possuidor dum raro espírito de autocrítica, não ocultava as faltas que houvera no planeamento e execução dessas suas propostas.

Não admira que o Sr. Percival Noronha tivesse sido um solteirão muito cobiçado. Passou, porém, a vida a cuidar da veneranda mãe, vindo a aposentar-se apenas um ano após a sua morte. Era igualmente dedicado à vida burocrática, passando horas a fio à mesa do gabinete, até para além das horas regulamentares. Um funcionário desse quilate podia facilmente esquecer-se de si próprio, como foi, na verdade, o caso do Sr. Percival Noronha.

Vida de aposentado

Teria sido diferente a sua vida depois de aposentado em 1981? Mudou de actividade, sim, mas o expediente não mudou de volume. Dedicou-se, a tempo inteiro, às matérias por que tinha propensão natural: a arte, a história e a astronomia.

Começou por dotar a sua residência com mobiliário de estilo tipicamente indo-português. Efectuou-se grande parte dessa obra no rés-do-chão do seu prédio, o qual havia sido confiado ao conhecido carpinteiro Zó. Disse-me, em mais de uma ocasião, que gastara nisso quase todas as suas economias. Também é verdade que todo dinheiro lhe era pouco quanto se tratasse de comprar objectos de arte e livros.[6] Assim, a casa se viu transformada em verdadeiro museu-arquivo que deveras honra o histórico bairro das Fontaínhas.

O Sr. Percival não parou por aí: tomou a peito vários assuntos de interesse público. Inspirado pelo alto funcionário (e depois governador) K. T. Satarawala, no ano de 1982 abriu um ramo da Indian Heritage Society em Goa e foi professor convidado da Faculdade de Arquitectura. Exerceu o cargo de secretário daquela organização não-governamental que, em colaboração com a Town and Country Planning Department, preparou um relatório sobre os prédios e sítios de importância arquitectónica no território de Goa. Foi também tesoureiro do INTACH (Indian National Trust for Art and Cultural Heritage) em Goa.

Esses organismos continua a desempenhar o importante papel de alertar a opinião pública e de sugerir medidas pela preservação do património cultural mas falta-lhes o Percival, que em crónicas de jornal e trabalhos de pesquisa, se esforçara por esclarecer os conceitos relativos à tradição goesa.[7] Tinha subjacente um apelo por que os goeses se pusesssem à altura da sua história e cultura, que fazia questão de interpretar como verdadeiramente indo-portuguesa. Sendo a Velha Cidade, sem dúvida, o berço dessa cultura, era natural que a antiga capital do Império Português no Oriente fosse a menina dos seus olhos.[8] E pelos serviços prestados à divulgação e defesa da cultura de língua portuguesa e da identidade indo-portuguesa em Goa o cronista do nosso passado foi agraciado pela República Portuguesa com a Ordem do Mérito (2014).[9]

Embora o Sr. Percival Noronha fosse indiferente em matéria religiosa, nunca hostilizou a Igreja. Pelo contrário, reconhecendo o papel desta no progresso espiritual e material dos povos, colaborou com as entidades eclesiásticas. Em 1986, quando da visita do Papa João Paulo II, participou entusiasticamente na preparação do evento. E, em 1994, foi membro fundador do Museu de Arte Cristã que ora se acha no Convento de S. Mónica.

Esse goês de gema era um arco-íris de saberes, tratando tanto da arqueologia como da astronomia com a mesma facilidade. Fundou a Association of Friends of Astronomy (AFA)[10], em 1982. Este organismo, além de vir a publicar uma revista mensal, Via Lactea, editada pelo fundador, abriu, em 1990, um observatório astronómico público – o primeiro do seu género na Índia – com o apoio do Departamento de Ciência, Tecnologia e Meio-Ambiente, do Estado de Goa.

O Sr. Percival Noronha viveu uma vida sem artifícios – plain living and high thinking. Foi um líder cultural que criou à sua volta uma pleiade de jovens com decidida propensão pela história, arqueologia, arte e astronomia. Na sua casa, onde funcionavam os dois organismos que criou, recebia jornalistas, pesquisadores e outra gente interessada. Teimava em alertar a geração nova sobre o grave estado de bancarrota civilizacional em que a sua amada Goa estava a descambar. Esses recursos humanos e hábitos salutares sendo o maior legado do Sr. Percival Noronha, tem razão a Fundação Oriente em apelidá-lo de “Um Goês Exemplar”, num livro que publicou em sua homenagem.

Na verdade, é a vida intelectual que o entusiasmava, contribuíndo também para a sua saúde física. A sua roda de amigos da velha data[11] nutria a saudade pelo passado enquanto a geração nova o desafiava com projectos futuristas. Era um desses amicus certus, que tratando-se de algum sem-vergonha, falava, tipicamente, com ironia e sorriso escarninho. Mas não vou sem frizar que a todos desejava o bem, e para uma vida saudável recomendava-lhes uma medida de moog grelado por dia! Antes da prótese da anca, em Abril deste ano, esteve relativamente lúcido e ágil.

Última conversa

96 anos da vida. Dir-se-ia mesmo que o Sr. Percival Noronha teve sete vidas. Nos últimos anos era seu costume, quando adoecesse, anunciar a sua morte e daí a dias estar em pé! Era como que tivesse um sistema imunológico como o do gato persa, de que gostava. Não era motivo para recear, pois, quando ouvi de novo que o Amigo estava em declínio. Tive, porém, empenho em conversar com ele demoradamente.

Às 4,30 da tarde, o Sr. Percival tinha já à mesa o bule de chá e bolachas. Dormira a sesta e estava pronto para uma conversa. A rapariga, às ordens, sentada lá no fundo da sala. E parecia tudo como dantes...

Foi quando notei que o venerando ancião tinha o cabelo despenteado, a barba por fazer, e faltava-lhe a placa de dentes. Nunca o vira assim… Os apetrechos de trabalho estavam lá todos, arrumadinhos, nas estantes e armários, dum lado da sala de jantar, onde costumava passar grande parte do tempo a trabalhar. Também isso não estava como dantes... E reflecti também que desta vez o meu anfitrião que viera ele à janela, como era seu costume, deitando para mim a chave da porta principal… Tudo isso indicava que a sua vida ia afrouxando. Fiquei triste.

Por outro lado, animou-me o facto de ele mandar vir esse ou aquele livro ou pasta que até sabia bem onde estava. Já dava sinal de certa lucidez... Continuando a conversa notei que já não era o mesmo Percival Noronha de 1969; ou o de 1999, quando me recomendou que concorresse para a tradução do livro de Maria de Jesus dos Mártires Lopes[12]; ou o de 2004, quando me deu um depoimento sobre a Velha Cidade[13]; e nem mesmo o de 2016, quando me falou sobre o meu tio-avô[14]. Não, não era o mesmo Percival Noronha!

No entanto, ia falando sobre o seu currículo escolar e profissional; as suas actividades depois de aposentado; sobre Salazar (cuja inteligência e honestidade admirava) e o 18/19 de Dezembro; a administração, portuguesa e indiana; os cursos e conferências que realizou nas universidades da Ásia e Europa; o futura da língua portuguesa em Goa; a cultura goesa e a distorção da sua história; os seus amigos e as pessoas que admirava; e a vida em Pangim: tudo isso, entre muitos outros assuntos, e não necessariamente nessa ordem de ideias.

Nos últimos meses, vi-o, várias vezes, debruçado no peitoril da varanda, qual abencerragem a observar a vida que corria lá fora, e com a cara de quem pensa: Quantum mutatis ab illo… Barbudo, lembrava Abraão, personagem de primordial importância para as comunidades à sua volta. E com aquele cabelo a voar e ele a fitar o firmamento, assemelhava-se à figura de Einstein…

Também lá do alto do Céu ouvirá – no último domingo do mês de Novembro deste ano – a última entrevista que concedeu cá na terra. Foi a minha última conversa com o Sr. Percival Noronha.

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[1] De nome completo, Percival Ivo Vital e Noronha (26.7.1923 –19.8.2019), filho de António José de Noronha, de Loutulim, e de Aurora Vital, de S. Matias.

[2] “Panjim: Princess of the Mandovi” (2002); “Fontaínhas: vivendo com o passado”(2001); “Fontaínhas: the Tale of Panjim’s Latin Quarter” (2003), in Percival Noronha: Um Goês Exemplar (Fundação Oriente, 2015)

[3] A vila de Pangim foi elevada à cidade com a denominação de Nova Goa, por alvará de 22 de Março de 1843, o qual lhe outorgou todos os privilégios de que gozavam as cidades de Portugal Continental.

[4] O incidente impulsionou a minha primeira intervenção jornalística em forma de uma carta ao director dum jornal de Pangim – “Our Honoured Guest”, in The Navhind Times, 12/6/1980.

[5] Na altura, cumulava este cargo com o de director da administração das Obras Públicas.

[6] Doou a sua casa ao sobrinho Francisco Lume Pereira, de Verna, onde Percíval Noronha faleceu, e os livros doou-os à Universidade dos Açores e à Krishnadas Shama Library, de Pangim; e os diapositivos, ao Arquivo Histórico Ultramarino.

[7] “Christian Art in Goa” (1993); “Indo-Portuguese Furniture and its Evolution” (2000); “Priceless Christian Art” (2004), e “Goan Artisans” (2008), in Percival Noronha: Um Goês Exemplar (Fundação Oriente, 2015).

[8] “Levantamento arqueológico da Velha Goa e tentativas para a sua conservação” (1989); “Old Goa in the context of Indian heritage”(1997); “Um passeio pela Velha Cidade de Goa”(1999); “A Capela de Nossa Senhora do Monte, em Velha Goa” (2001), ), in Percival Noronha: Um Goês Exemplar (Fundação Oriente, 2015).

[9] Recebeu  ao todo 16 galardões de proveniência vária.

[10] http://afagoa.org/about_us.html

[11] Entre outros, António dos Mártires Lopes, Aleixo Manuel da Costa, Maria de Jesus dos Mártires Lopes, Alcina dos Mártires Lopes, Artur Teodoro de Matos, Luís Filipe Thomaz, Teotónio de Souza, Rafael Viegas, Nandakumar Kamat, Satish Naik.

[12] Tradition and Modernity in Eighteenth-Century Goa (Manohar, New Delhi & Centro de HIstória de Além-Mar, Lisboa, 2006)

[13] Old Goa: A Complete Guide (Panjim: Third Millennium, 2004)

[14] Castilho de Noronha: por Deus e pelo País (Panjim, Third Millennium, 2018)

Fotos de Orlando de Noronha, com excepção da da condecoração (e-cultura.pt) e da do lançamento do livro (Fundação Oriente)

Publicado na Revista da Casa de Goa, II Série, Número 1, Maio/Dezembro de 2019 https://issuu.com/jmm47/docs/revista_da_casa_de_goa_-_ii_s_rie_-_n1_-_maio-dez_


Our Honoured Guest

The directive from the Union Home Ministry to give the loving last Portuguese Governor-General, General Manuel Antonio Vassalo e Silva, a “warm welcome” and a “foreign dignitary VIP treatment” is to be admired as the Government showed their love and respect to that person who earlier pictured his fine sensibilities to Goans whom he so dearly loves.

But, at the same time, there seemed to be a few of our own people who although owing so much to Gen. Vassalo tried to misunderstand the Government: A “warm welcome” (the Government’s call) doesn’t only mean giving a beautiful bouquet of flowers to the visitor at the airport but still more, it emphasizes the need for a good treatment during his stay in this place.

Although all plans for a “warm welcome” were made well in anticipation by our Speaker, Mr Froilano Machado, there was something unhappy awaiting Gen. Silva at the Azad Maidan, when he went there to place a wreath at the Martyrs’ Memorial, much to the surprise and dislike of hundreds of Goans worthy of Mr Silva’s kindness: it was a dharna, a protest with black flags against the ex-Portuguese Governor-General’s visit to Goa; he who did so much good for us Goans. That should not even have been thought of because Gen. Silva was invited by Goans who intend to manifest their love and gratitude towards him. Secondly, what has Mr Silva to do with the integration of Goa into the Indian Union? Is Mr Silva responsible for Salazar’s misdeeds?

On the other hand, if any Goan had to open his heart and say something genuine against the Portuguese he would have done so or should have done so by approaching Gen. Silva in a very gentlemanly manner and not by what we witnessed at the Azad Maidan. This sort of behaviour from the Goans who are known for their non-aggressiveness and kindness is unthinkable.

Keeping aside the misbehaviour of a handful of people, I would like to mention that there were many also who openly showed their consideration for the Portuguese: one was an aged woman who respectfully wished the popular ex-Governor-General who then spoke very emotionally to her. A few steps further, some others waited to salute and talk to the octogenarian, who recalled his good old days with them in Goa.

We congratulate Gen. Vassalo e Silva who gave out the truth that Salazar didn’t ask him to destroy but to “defend it to the last”. This will remove the misconceptions about the affair.

Kudos to the editorial which has described Gen. Silva very well as a man to whom we ought to be grateful.

(Letter to the editor, The Navhind Times, Panjim, 12 June 1980, p. 2)