Ao conhecer um grande senhor nascido apenas duas décadas após a Revolta dos Cipaios[1], senti a corrente do passado transitar suavemente para o presente. Esse notável goês, que emigrara para Portugal no ano da Grande Depressão, passou os anos de jubilado em Goa e faleceu após Portugal ter reconhecido formalmente a conquista indiana da sua terra natal. Era quase centenário, porém, isso é o mínimo que se pode dizer de alguém que marcou na história de várias outras maneiras.

Primeiros anos
Mariano José Luís de Gonzaga Saldanha, vulgo Mariano Saldanha, nasceu em 21 de Junho de 1878, filho de Luís José António Assis André de Saldanha, de Ucassaim, e de Ana Joaquina Ermelinda da Pureza e Dias, de Socorro. Era médico que se fez indologista e pesquisou a história, língua, literatura e cultura indo-portuguesas. Era sobrinho de dois irmãos padres, Joaquim José Santana de Saldanha, fundador de uma escola na aldeia, e de Manuel José Gabriel de Saldanha, professor do Liceu de Nova Goa e autor da clássica História de Goa[2], em dois volumes.
Em 1905, Mariano Saldanha formou-se em medicina e farmácia pela antiga Escola Médico-Cirúrgica de Goa e depois trabalhou como médico em Goa e a bordo de navios. Entretanto, sentindo-se vocacionado para o estudo de línguas indianas, aprendeu o sânscrito com monsenhor Sebastião Rodolfo Dalgado, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e frequentou cursos na Escola Colonial. Na época de Herculano em Portugal, e de Cunha Rivara e de Dalgado em Goa, não era raro um profissional do ramo da ciência interessar-se pelas humanidades; contudo, no caso de Mariano Saldanha, a mudança foi total.
Em 1915, foi nomeado professor de marata e sânscrito no referido Liceu. No ano seguinte, publicou O Curso de Sânscrito Clássico,[3] que compreendia o seu discurso inaugural sobre a importância desta língua e os documentos relativos à criação do curso em questão. Em 1926, traduziu o poema Mêghaduta, ou a mensagem do exilado,[4] de Kalidasa, poeta e dramaturgo da Índia antiga, anotado, prefaciado e acompanhado do original sânscrito.

Docente em Lisboa
Em 1929, Mariano Saldanha mudou-se para Lisboa, agora como professor de sânscrito na sua alma mater, ocupando o lugar que ficara vago desde a morte de monsenhor Dalgado em 1922. Trazia ao povo português uma mensagem de amizade de Rabindranath Tagore, Prémio Nobel da Literatura, quem visitara em Shanti-Niketan em 1927, atraído pela ideia de harmonizar a cultura indiana antiga com ideias internacionais. Após a morte do grande poeta e pedagogo bengalês, Saldanha recordou o encontro na memória que publicou com o título “O Poeta de uma Universidade e a Universidade de um Poeta”[5].
Em 1946, Mariano Saldanha era nomeado subdirector do Instituto de Línguas Africanas e Orientais da Escola Superior Colonial, onde veio a leccionar o sânscrito e o concani até se aposentar em 1948. Publicou a Ultima Lectio[6], e depois da jubilação, um manual, Iniciação na Língua Concani, “especialmente organizado para o ensino, de carácter prático, da língua concani” na referida Escola.[7]
Voltou a Goa em 1950, onde permaneceu cerca de quatro anos, tendo sido depois convidado pelo Governo da Metrópole a participar na elaboração de um projecto de ensino público em concani, para Goa, e na transmissão de programas radiofónicos nessa língua para a diáspora goesa na África Oriental Britânica e no Golfo Pérsico.[8]
Aproveitou a oportunidade para continuar as suas pesquisas na capital.
Concanista de renome
Além de docente, Mariano Saldanha foi um investigador de renome, principalmente como concanista, ou seja, na ‘Concanologia’[9]. No 50.º aniversário da morte do ilustre estudioso, cumpre recordar o seu precioso contributo para os estudos da Língua Concani, que tanto amou e pela qual tantos esforços despendeu.
Dedicou-se sobremaneira à pesquisa fundamental da língua da sua terra natal. Visitou bibliotecas, arquivos e museus de Goa, Lisboa, Évora, Braga, Paris, Londres e Roma, vasculhando livros e manuscritos, à procura da mais pequena pista. Escreveu exuberantemente, com artigos em revistas científicas e em jornais.
Em 1936, escreveu uma valiosa história da gramática concani, no Bulletin of the School of Oriental Studies, que se destacou também pelo pioneirismo.[10] Em 1943, escreveu uma série de artigos sobre “Questões do Concani”, no Heraldo, um diário panginense.[11]
Em 1945, publicou a 2.a edição, fac-similada, com introdução, notas e glossário, de Doutrina cristã em língua concani (1622)[12], de Thomas Stephens, missionário jesuíta britânico, que foi o primeiro inglês a chegar ao subcontinente indiano e pioneiro no estudo das línguas indianas.

Em 1950, descobriu três códices na Biblioteca Pública de Braga, a saber, n.os 771, 772 e 773. As primeiras duas relatam, em concani, histórias tiradas das epopeias indianas, respectivamente, o Mahabharata e o Ramaiana; o último contém três dezenas de poemas em marata, também da mesma fonte; e todos eles escritos em caracteres romanos.[13] Prontamente informou outros interessados, inclusive um dos seus dissidentes ideológicos, A. K. Priolkar.[14]
Cultura goesa
Mariano Saldanha tinha consciência da rara singularidade de Goa, no meio do vasto subcontinente indiano, como síntese cultural do Oriente e Ocidente e detentora de um modo de vida próprio. Por isso, em 1947, mal que sentiu soprar os ventos da mudança política, o seu profundo amor à terra natal levou-o a dar um sinal de alerta.
Fê-lo primeiro por meio de um ensaio intitulado “A lusitanização de Goa”, na revista Rumo.[15] Em Goa, a Repartição de Estatística e Informação reimprimiu-o,[16] e em Portugal, a Agência-Geral do Ultramar traduziu-o em grande parte para o livro Portugal Overseas and the Question of Goa[17]. Ainda hoje é muito citado.
O douto professor sentiu-se feliz como presidente da 5.a edição do Konkani Porixod, conferência a nível pan-indiano, realizada em Bombaim, em 1952. O seu «Odhiokxachem Bhaxonn»[18], ou discurso presidencial, foi publicado em caracteres latinos, que recomendava para o concani moderno. Nessa ocasião afirmou que o concani é uma língua independente do marata e que deveria ser o veículo de instrução primária em Goa.
A propósito do referido Porixod, deu largas ao seu conceito histórico da língua concani, na memória intitulada “A língua concani: as suas conferências e a acção portuguesa na sua cultura”, publicada no Boletim do Instituto Vasco da Gama.[19] Duas décadas antes abordara esse tema no IX Congresso Provincial de Goa[20].
Nesta fase da vida, expressou-se também sobre a música ocidental em Goa[21]; sobre a imprensa seiscentista aí estabelecida, pioneira na Ásia[22]; e sobre a literatura purânica cristã[23], frisando sempre a identidade marcante de Goa.
Os seus trabalhos retratam-no como investigador escrupuloso, crítico exigente e polemista temível.[24]
Últimos anos
Em 1958, Mariano Saldanha voltou de vez ao solar da família e à aldeia natal que ainda mantinha o charme rústico de outrora. Aceitou como facto consumado o desfecho que teve o conhecido Caso de Goa e, em 1967, regozijou-se com o resultado do Opinion Poll, ou referendo. Infelizmente, na vida particular, foi, por um lado, vítima das leis de expropriação do período pós-1961, e por outro, privado das suas últimas economias que havia confiado ao seu antigo empregado em Portugal. Para agravar, saiu prejudicado na reforma devido ao novo contexto político.

Apesar disso, a vida continuou. Com excepção da gota e da surdez, gozava de boa saúde e manteve-se lúcido até ao fim da vida. Escrevia para os órgãos públicos, recebia visitas e aceitava convites para reuniões académicas e outras. E ainda na provecta idade, costumava celebrar o seu aniversário, cercado de familiares e amigos da velha-guarda.
Manuel Leitão, filho do seu antigo cuidador Francisco, recorda-o como um católico devoto, de coração bondoso e leitor assíduo de jornais da língua portuguesa (O Heraldo e A Vida), concani (Vauraddeancho Ixtt, Sot e Uzvadd) e marata (Gomantak), de entre os publicados em Goa. Mantinha relações com os respectivos directores e colaboradores, e no interesse destes, e ansioso por estabelecer padrões elevados, corria com tinta vermelha os jornais concani.
O erudito era consultado em assuntos relativos a Goa e ao concani. Não admira que a sua rica biblioteca com centenas de livros, microfilmes e manuscritos, tivesse atraído jornalistas e investigadores, entre os quais Carmo Azevedo, que, escrevendo no mensário Goa Today, o apelidou de “enciclopédia viva de coisas goesas”[25], bem como os activistas do Konkani Bhasha Mandal. A família doou o acervo ao Xavier Centre of Historical Research, de Goa.
Apesar das cãs, o bom e velho solteirão era paciente com os jovens. Maria Helena Saldanha de Santana Godinho deleitava-se com o saber e a sagacidade do seu tio-avô. Graças à sua prodigiosa memória, este contava-lhe prontamente histórias sobre Akbar, Xivaji e outros vultos indianos, que faziam parte dos currículos escolares do pós-1961; e ela incluía-as nas suas provas.

Tive eu, como menino de 6 anos, o meu primeiro encontro com o professor já então nonagenário. No Hospital do Asilo, em Mapuçá, havia ele discursado e descerrado o busto do Dr. Ernesto Borges, seu sobrinho-neto, oncologista de renome mundial e que cedo pagou o tributo à morte. Foi um momento emocionante. Eu acompanhava a minha tia Maria Zita da Veiga, que havia experimentado o seu toque curativo. Após a cerimónia, perguntaram ao professor se se importaria de esperar um pouco mais pelo transporte para casa. Impressionou-me a sua resposta: “Claro que me importo”. E logo a gargalhada que se seguiu desdizia tudo….
É impossível dizer tudo de uma vez sobre Mariano Saldanha, distinto académico goês que muito honrou a sua terra. Faleceu em 23 de Outubro, mês Mariano, do ano de 1975, quase desconhecido das novas gerações e um tanto esquecido pelas velhas. Deve ser, porém, evocado com gratidão e estudado com atenção, tal como todos os vultos da nossa terra, para que se facilite assim uma transição harmoniosa do passado para o presente.
(Publicado na Revista da Casa de Goa, Serie II, No. 37, Novembro-Dezembro 2025, pp. 33-37)
Referências
[1] Revolta armada, realizada entre os anos de 1857 e 1859, em oposição ao domínio britânico, a qual de Meerut passou para Delhi, Kanpur e Lucknow, cidades no norte da Índia.
[2] 2.ª edição. Nova Goa: Edição da Livraria Coelho, 1925-26. A primeira edição intitulava-se Resumo da HIstória de Goa, publicada em 1898, em um único volume.
[3] Nova Goa: Imprensa Nacional, 1916.
[4] Nova Goa: Casa Editora Livraria Coelho, 1926.
[5] Revista de Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, N.º X, 1943, pp. 57-77.
[6] Anuário da Escola Superior Colonial, Ano XXIX, 1947-48, Lisboa, 1948. Também nos Estudos Coloniais, Lisboa, Vol. I, 1948-49.
[7] Parte I: Noções Gramaticais. Lisboa: 1950. Não consta que tenha saído a Parte II.
[8] “Mariano Saldanha: a centenary tribute”, de Teotónio R. de Souza, in Indica, Vol. 15, N.º 2, Setembro de 1978, pp. 135-138.
[9] Termo por ele cunhado para se referir às “publicações relativas ao concani”, veja-se Monsenhor Dalgado. Esboço bio-bibliográfico. Lisboa: 1933, p. 11.
[10] “História da Gramática Concani,” Bulletin of the School of Oriental Studies 8 (1935–37), pp. 715-735.
[11] Heraldo, de 14, 16, 24, e 30 de Março de 1943.
[12] Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1945.
[13] Os códices ora encontram-se na biblioteca da Universidade do Minho, veja-se The Old Konkani Bhārata. Volume 1: Introduction, de Rocky Miranda (Margão: Asmitai Pratishthan, 2019), p. xi.
[14] Mais tarde, Panduronga Pissurlencar, José Pereira, António Pereira, Lourdino Rodrigues, Rocky Miranda e outros serviram-se dos mesmos códices para os seus trabalhos de pesquisa.
[15] Rumo, Revista de Cultura Portuguesa. Ano 1, Agosto e Setembro, 1946, pp 343-366
[16] No. 6 da série da Colecção de Divulgação e Cultura.
[17] Lisboa: Agência-Geral do Ultramar, s.d., pp 41-58
[18] Konknni Porixod. Panchvi Boska. 1952. Odhiokx: Dr. Mariano Saldanha, Hachem Bhaxonn. (Mumboi: Fr Napoleon Silveira, 1952) É o único texto seu expresso inteiramente em concani.
[19] N.o 71, 1953.
[20] Congresso Provincial da Índia Portuguesa (Nono), Nova Goa: Tip. Bragança, 1931.
[21] “A cultura da música europeia em Goa”, Separata da Revista do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, Vol. VI (1956).
[22] “A primeira imprensa em Goa”, Separata do Boletim do Instituto Vasco da Gama, N.º 73, 1956.
[23] “A literatura purânica cristã e os respectivos problemas linguísticos e bibliográficos”, Separata do Boletim do Instituto Vasco da Gama, N.º 82, 1961.
[24] Veja-se As investigações de um gramático (Lisboa: Tip. Carmona, 1933), em que escalpela a obra Elementos gramaticais da língua concani (Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1929), de José de S. Rita e Sousa, antigo professor da Escola Superior Colonial; e Aditamentos e correcções à monografia O Livro e o Jornal em Goa (Bastorá: Tip. Rangel, 1936) e Ainda a monografia O Livro e o Jornal em Goa (Bastorá: Tip. Rangel, 1938), nas quais interpela o professor liceal Leão Crisóstomo Fernandes.
[25] “A Date with Dr. Mariano Saldanha”, in Goa Today, p. 13.
Os artigos do Sr. Oscar Noronha são sempre um convite à descoberta e à reflexão. A sua escrita alia erudição, sensibilidade e um profundo respeito pela memória cultural de Goa. No seu mais recente texto, “Mariano Saldanha: um distinto académico goês”, D. Oscar volta a demonstrar a mestria com que revisita figuras marcantes da história, iluminando-as com um olhar atento e uma narrativa envolvente e muito bem documentada.
Mais do que uma leitura informativa, é uma viagem pela identidade goesa, pelo legado linguístico e intelectual que tantas vezes permanece esquecido. A clareza com que o autor entrelaça rigor académico e paixão pelo conhecimento transforma cada artigo numa verdadeira lição de cultura e de humanidade.
Ler D. Oscar Noronha é, sem dúvida, um prazer raro — daqueles que nos recordam a importância de valorizar o património e os nomes que o edificaram com sabedoria e dedicação. Um abraco da Espanha