Excerto (ligeiramente editado) do prefácio de Felício Cardoso à obra intitulada Tiatrancho Jhelo (Goa: Goa Konknni Akademi, 1996). O livro, cujo título significa “Grinalda de Teatros”, por ele editado, foi publicado pela Academia da Língua Concani, de Goa, a assinalar o primeiro centenário do teatro da língua concani.

Felício Cardoso (1932–2004), natural da aldeia de Seraulim, Goa, foi um jornalista que destacou o uso e o progresso da língua concani na segunda metade do século XX. O seu tablóide Sot fundiu-se com o diário de língua portuguesa A Vida, formando um novo diário de língua concani Divtti, do qual ele era director associado. Mais tarde dirigiu o diário Novem Goem. Traduziu alguns escritores russos, resumiu a história de Aladdin e os Quarenta Ladrões em concani, publicou Tufan, uma colecção de seus contos, e editou Tiatrancho Jhelo. Faleceu num acidente de viação junto com o amigo e companheiro de trabalho Pe. Freddy da Costa.

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O vocábulo Tiatr[i] advém da palavra portuguesa “Teatro”, que significa drama, casa de cinema, e ainda, colectânea das obras dramáticas de um escritor. Ora, em concani, essa palavra adquiriu um sentido especial: drama, encenação, divertimento, canção, pequenas representações (farsas). Tudo isso, quando apresentado no palco, leva o nome de tiatr.

Foram artistas da comunidade católica goesa que deram início ao tiatr, na cidade de Bombaim, em abril de 1892. Uns sócios goeses do Instituto Luso-Indiano nessa metrópole costumavam apresentar peças teatrais, em português ou inglês, no Gaiety Theatre (ora, Capitol Cinema) e no Cowasji Hall, em Dhobitalao, uma ou duas vezes ao ano, assistindo a elas só gente ilustrada. Às vezes, os goeses com menos ou sem instrução, participavam no zagor[ii]. Em geral, esta apresentação era de baixa qualidade, e obscena, sendo por isso motivo de vexame à comunidade goesa.

Lucasinho Ribeiro

Lá pelo ano de 1890, a Italian Opera Company apresentava uma peça em Bombaim, onde nessa altura viera Lucasinho Ribeiro[iii], de Assagão. Este, mal que viu essa ópera, sentiu desabrochar em si a arte teatral. Por intermédio de um goês, arranjou forma de entrar nessa trupe, em que ficaria encarregado só de manobrar a cortina, pois outra coisa não sabia, sendo por isso até mal pago. Depois de ter viajado com essa equipa às cidades de Puna, Madrasta, Simla e Calcutá, demitiu-se quando a companhia estava prestes a viajar para a Birmânia.

Ora, Ribeiro voltou a Bombaim com as velhas roupas de veludo que adquirira a essa companhia teatral, tencionando apresentar uma ópera em concani. Travou conhecimento com Caetaninho Fernandes[iv], de Taleigão, e andaram os dois à procura de moços que se dispusessem a actuar no tiatr. Não encontraram, porém, qualquer interessado; ninguém se dispunha a subir ao palco, receando que o tiatr não passasse de mero zagor. Ribeiro ficou triste por não poder levar avante o seu plano, dadas as dificuldades.

Um dia, quando menos esperava, Caetaninho encontrou-se com João Agostinho Fernandes,[v] de Margão. Contou-lhe o seu plano a respeito do tiatr. Por sua vez, Agostinho visitou Ribeiro. Depois, os três visitaram os kudd[vi], onde contavam angariar jovens para o projecto do tiatr. A muito custo, acharam dois rapazes, um deles,[vii] Augustinho Mascarenhas, natural do bairro Mungul, de Margão.

J. Agostinho Fernandes

Ribeiro precisava de 9 artistas para a encenação da sua ópera; porém, eles eram só cinco. Decidindo então que cada um desempenharia dois papéis, puseram-se a ensaiar a peça todas as tardes. Em fevereiro de 1892, esses cinco jovens entusiastas, sob a direcção de Lucasinho Ribeiro, lançavam as bases do teatro em concani. Em 17 (?) de abril desse ano, no New Alfred Theatre, foi ao palco o primeiro tiatr, muito parecido com ópera, intitulado “Italian Bhurgo” (‘Moço Italiano’).[viii]

Dada a ligação íntima que a comunidade cristã de Goa tinha com os portugueses, estes tinham grande ascendente cultural sobre os goeses. Também se nota a influência da cultura ocidental sobre o teatro da língua concani. A maioria das cantaram (canções) do tiatr são baseadas em músicas ocidentais.

Em poucos anos, surgiram mais companhias teatrais na cidade de Bombaim, entre outras, The Goa Portuguese Dramatic Company; Ribeiro & D’Cruz Opera Co.; Lusitan; Dona Amélia; Dom Carlos; Douglas Comic Opera; Karschiwalla’s Delectable Co.; Goa Union; Lazarus Comic Opera; Goa National; Union Jack: todas elas muito populares.

O tiatr tradicional – seja ele de divertimento; social; religioso, ou outro– compõe-se de 7 partes, conhecidas como porde (cortinas). No começo do tiatr, e quando cai a cortina, são interpretadas três ou mais canções. Elas não têm relação alguma com o tema do tiatr; e, sejam solos, duetos, trios ou quartetos, têm o condão de fazer rir ou chorar, de corrigir as depravações sociais, apontando às falhas de corrupção ministerial e de astúcia política, e de repreender os maus. Em toda essa mescla, o tiatr tem graça e sobressai.

Uma cena do tiatr moderno

Dantes, o tiatr constava de 21 ou mais canções. Realizava-se à noite, e terminava na madrugada seguinte. Hoje, porém, tem havido muitas alterações. Está reduzido o número de cortinas e de canções.

Actualmente, é radiodifundida uma variante do tiatr que se chama khell-tiatr ou “non-stop show” (teatro popular, ora conhecido como “espectáculo ininterrupto”).

O tiatr, apesar de ter sido emanado do zagor, ocupa um lugar ímpar na Índia. É mais distinto do que o teatro em diversas línguas indianas. Não se assemelha a outros géneros dramáticos, ou seja, ao khell doxavtari ou o tamasha do Maharashtra; não é igual ao Bhovaia do Guzerate ou às canções populares do Karnataka; não se assemelha ao latra ou zatra da Bengala, ao Ramlila ou Roslila do Norte da Índia, ao nouttonki do Punjabe, ou ao kathakali do Kerala.

A maioria das peças teatrais não estão em letra de forma. Estão a rarear os seus manuscritos, sendo pouquíssimas as excepções. Estão impressos os dramas de João Agostinho Fernandes e de uns outros dramaturgos. De entre os nossos contemporâneos, artistas amadores como Tomazinho Cardoso, o padre Planton Faria, o padre Freddy J. da Costa e César D’Mello, têm vindo a publicar as suas peças teatrais.[ix]

Nos últimos 50 anos, foram encenados esses tiatr em Goa, em Bombaim e em outros lugares. Estão sempre cheios do tempero da sensação. No tiatr são tecidos o enredo, o diálogo, o entretenimento, o amor, a ira, o suspense e outros elementos.

Nos primeiros cem anos do teatro concani nasceram e morreram milhares de artistas de renome. Saíram da sua pena e foram levados ao palco inumeráveis tiatr que também merecem ser publicados. Caso contrário, esta nossa arte dramática entrará no ocaso.

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[i] Tiatr é a forma tanto singular como plural desse substantivo em concani.

[ii] Zagor, teatro popular da comunidade hindu de Goa.

[iii] A certa altura, Constâncio Lucasinho Caridade Ribeiro (1863-1928) separou-se dos outros três, fundando a Ribeiro & D’Cruz Opera Company. Diz João Agostinho Fernandes, no seu artigo intitulado “Theatrancho Bhangaracho Jubileo”, publicado no Avé-Maria, semanário bombaense, em 25 de novembro de 1943, que foi Ribeiro o pioneiro da arte do tiatr.

[iv] Era empregado do bissemanário Bombay Gazette.

[v] João Agostinho Fernandes (1871-1947) foi empregado comercial e a sua (primeira) esposa, Regina, a primeira mulher goesa que subiu ao palco. Escreveu 27 peças teatrais em concani. Popularmente conhecido como ‘Pai Tiatrist’ (Pai dos Dramaturgos), foi baptisado com o seu nome e epíteto a sala de concertos Ravindra Bhavan, em Margão.

[vi] Kudd, aposento(s), que aqui se referem aos clubes, estabelecidos por associações goesas em Bombaim, e nos quais goeses de estratos mais humildes se aloja(va)m, transitoria ou demoradamente, quando em serviço nessa metrópole.

[vii] O quinto chamava-se Fransquinho Fernandes (Cf. John Gomes (Kokoy), Tiatr Palkhache Khambe, Goa: Queeny Productions and Publications, 2010, p. 5).

[viii] Sob a égide de The Goa Portuguese Dramatic Company, formada em 1892 (Cf. André Rafael Fernandes, When the Curtains Rise, Goa: Tiatr Academy of Goa/Goa 1556, p. 8)

[ix] No referido Tiatrancho Jhelo figuram os seguintes tiatrist (dramaturgos): no primeiro volume, C. Álvares (“Kedna udetolo to dis”, ‘Quando raiará esse dia?’); Remmie J. Colaço (“Atancho Temp”, ‘Os tempos actuais’); John Claro Fernandes (“23 Vorsam”, ’23 anos’); Prem Kumar (“Vauraddi”, ‘Operários’); e M. Boyer (“Ekuch Rosto”, ‘Única Via’); e no segundo, João Agostinho Fernandes (“Kunnbi Jaki”, ‘O curumbim Jaki’); José Pascoal Fernandes, vulgo J. P. Souzalin (“Sat Dukhi”, ‘Sete dores’); Aleixinho Fernandes, vulgo Aleixinho de Candolim (“Amchi xetachi panvddi”, ‘O leilão da nossa várzea’); A. Souza Ferrão (“Gouio Put”, ‘O filho maluco’); Caetano Manuel Pereira, vulgo Kim Boxer (“Somzonnent chuk zali”, ‘Um mal-entendido’). O terceiro e último volume, dedicado ao khell-tiatr, teatro popular, não chegou a ser publicado.

(Publicado na Revista da Casa de Goa, Série II, No. 22, maio-junho 2023)