Um conto de Damodar Mauzó

Traduzido do concani por Óscar de Noronha

É meio-dia. O sol, qual inimigo implacável, agride brutalmente a pele. O chão cá abaixo, o céu lá acima, e ardem as criaturas como as brasas do fogão a lenha! De todo o lado, um calor de escaldar.

Já lá foi o mês de maio, e o de junho está quase no fim, porém, não há sinal da monção. O solo quente, seco e mirrado de sede, olha súplice para o céu. Não há uma só nuvem no firmamento. Volve então os olhos queixosos, mas ai, não era capaz de verter uma só lágrima.

As mangueiras, as jaqueiras, as árvores de gralha e as palmeiras – murcharam todas elas, coitadas. Queimaram-se as folhas; as sobreviventes estão crestadas. E as arvoretas! Ora bem, vivem porque não lhes veio a morte…. Se é esse o estado das árvores, nem queira saber o que é da erva e do arbusto! Há muito que a erva se desenraizou, e ora lá se vê só areia. E os arbustos? Encontram-se no seu lugar umas esguias estacas.

As várzeas confundem-se com as hortas. Os poços secaram um por um; e as lagoas ressecaram. Até a sua lama se transformou em pedregulho. Os seres humanos da região safaram-se para terras longínquas. Os pássaros migraram para outros países. Pereceu o gado. Tudo que sobrevive espera a morte.

Nesse sol abrasador do meio-dia, passa por lá uma cobra-d’água levando consigo o seu rebento. Vai em ritmo acelerado. Faria algum sentido sair a essa hora? De mais a mais, é cobra, cuja natureza é de se arrastar pelo chão. Devia-lhe arder o corpo; pelos vistos, a cobra-d’água não se dá conta disso. Vai andando, com os olhos postos no filho. Quem visse essa cena não deixaria de lhe chamar louca. Mas… quem vai reparar nisso?

A cobra-d’água atravessa várzeas, hortas e valados. Deparando com um coqueiro, à sua sombra faz uma breve pausa; suspira e põe-se de novo a caminhar com o filhote. Ela própria não deve saber para onde vai.

A certa altura, encontra uma várzea. Ó minha mãe! Que tamanha que ela é! Mas evitando pensar nisso e de se deter na soleira, desce do valado e percorre os cômoros da várzea. Ó senhora minha! Quem a visse agora, não deixava de lhe dizer com dó: “Cobra-d’água, por que andas à soalheira do meio-dia? Contas pelo menos chegar ao outro lado? Cuidado com a tua vida! Melhor era voltares atrás para este valado. Fica ao pé desta árvore-de-gralha até à tardinha!…” Mas a cobra-d’água não se dispunha a ouvir. Nem tomaria a peito esse conselho. Quando muito, diria de passagem: “Olha, não há tempo para descansar! E que importa que eu morra no caminho? Ora, só porque a morte não vem…”

Essa várzea tem até os cômoros já desmoronados. Só se faz sentir a areia, essa areia quente! Lembra-se de quando, à cata de um rato, entrara na casa do José, vendedor de grão assado. Ficara num canto a observá-lo. O José havia deixado ao lume uma grande panela de barro, em que metera areia. Sobre esta, depois de bem aquecida, vazara grão, e ora… ao caminhar, arrepiou-lhe o corpo de se imaginar ela própria o grão sobre a areia!

‘Ai-ai!’ suspirou a cobra-d’água ao ver um valado que, à borda, tinha um anacárdio – árvore de bibó! Ansiando por um pouco de sombra, acelerou o passo e chegou-se ali. Subiu com algum esforço e meteu-se debaixo da árvore. Ó senhor! Onde está o seu filho? Até há pouco estava com ela. Aflita, voa pelo trecho do valado, quando afinal estava mesmo lá em baixo. Julgando que tinha dificuldade em subir, a cobra-d’água saltou, para prestar ajuda. Caramba! Porque está assim inerte? Ela só dá com o caso quando lhe toca com a cara….

Com a morte na alma, subiu de novo ao valado. Não tinha o mínimo de forças para levantar o corpo do filho. Sentou-se debaixo da árvore, a pensar. Passaram-lhe então pela mente um incidente após o outro.

Quando vivia o marido, não faltava nada à cobra-d’água; satisfazia-lhe todas as necessidades. E como adorava ele os filhos! Mas… não era essa a vontade divina. Um dia, o marido teve de sair à busca de alimento. Como tivesse muita sede entrou numa pia anexa a uma casa, à procura de água. Estava lá um caldeirão. Ó que sede de água! Desejando satisfazê-la, meteu a cabeça nessa panela. Entretanto, um malvado quebrou-lhe a coluna vertebral com uma paulada nas costas. Mesmo assim, a cobra-d’água, às escondidas, arrastou-se até à casa. Tentaram de tudo para a salvar, mas…

Ora, a cobra-d’água sentia vontade de morrer… Que tinha mais a fazer na vida? Mas não podia ser! O marido, à beira da morte, havia-lhe aconselhado a tomar conta dos filhos. Por isso, viveria só por amor aos dois.  Porém, foi cruel o destino! Ambos –

Já o verão estava no fim, sem que houvesse o menor indício de chuva. Secos os poços e ressequidas as lagoas, nem para mezinha havia sequer uma gota de água. Nessas circunstâncias, a cobra-d’água superou todos obstáculos para cuidar dos filhos. Privou-se a si própria, mas não os filhos. Donde é que lhes arranjaria água dado que à própria terra escasseava? Entretanto, de sede morreu-lhe uma criança; e ficaram elas duas, a mãe e uma outra. Esvaziara-se toda a região. Haviam partido as serpentes, as cobras de rato e todas outras. Ficara só a pobre cobra-d’água, na expectativa de que viesse a chuva sem mais delongas. E só quando não podia mais, abandonou os seus bens, pegou no filho e partiu… E agora, este mesmo filho deixou-a!

A cobra-d’água derramou duas lágrimas.

‘Porquê choras, cobra-d’água querida?’ – de repente, ouviu ela uma voz, afectuosa, que lhe fez lembrar a do marido – e logo rolaram mais duas lágrimas.

‘Por amor de Deus, não chores assim!’

A cobra-d’água, cismada, lançou um olhar ao redor. Não estava ninguém no valado; além da árvore de bibó, nem uma planta sequer. Então, seria mesmo o bibó–?

‘Sim, sou eu mesmo, o bibó, que te estou a falar. Porque choras?’

Fitando a árvore, com os olhos marejados de lágrimas, e a sentir-se já um tanto aliviada da dor, soltou um grande suspiro e contou-lhe a sua história. Comoveu-se muito o bibó! Mas que podia ele fazer? Suspirou e guardou uns momentos de silêncio. Perguntou-lhe então a cobra-d’água: ‘Ó bibó, estás aqui só, não estás? Isso não te aborrece?’

‘Que remédio? Dantes, tinha a companhia das trepadeiras e dos arbustos, e ali na borda estava uma palmeirinha. Mas… mas hoje, estou cá sozinho, a contar os dias. Quando me lembro dessa palmeirinha, fico triste! Nem coco verde chegou a dar; entretanto, foi-se embora, coitada!’

‘Não leves a mal esta pergunta, bibó!… O que te faz viver?’

Dentro em pouco, respondeu o bibó: ‘A minha vida já não faz sentido. Sei muito bem que mais dia, menos dia, hei-de morrer. Estou vivo, cobra-d’água… estou vivo somente porque não vem a morte!…’

O bibó vive porque não lhe vem a morte! Também eu vivia porque não me vinha a morte? Não! Vivia mas era por causa dos meus filhos – e sim, quem tenho eu agora? Porquê viver?

‘Entendo. Ó cobra-d’água, já sei o que estás a pensar. Ouve bem! Existem muitas criaturas no mundo. Umas estão desapontadas; outras sentem-se livres por terem já cumprido os seus compromissos, os seus deveres. Estas não pensam na morte; vivem pacatamente, aguardando a sua hora… E tu não deves morrer! Ouve lá! Existe uma lagoa a umas sete ou oito léguas a leste daqui. É pequenina. Vai tu ficar nesse lugar. Ninguém conhece o sítio, e não me parece que chegue lá alguém! Vai lá viver. Pronto, tens de viver, pelo menos porque te não vem a morte.”

Levantou-se a cobra-d’água; olhou para o bibó e começou a lacrimar.

‘Cobra-d’água, queiras fazer-me um favor!’

‘Diz, bibó, diz! Estou às ordens. Queres que eu fique aqui mesmo?’

‘Não, cobra-d’água. Se ficares aqui, não viverás. Tens de ir mesmo. Mas antes disso, faz-me este favor…’ disse o bibó, emocionado. ‘Há mais de um mês que não vejo nenhum ser vivo. Hoje vieste tu. Seria um favor se por uma última vez serpeasses, à vontade, sobre o meu corpo…’

A cobra-d’água subiu num instante. Chegou até ao topo, trepando-lhe o ombro e enrolando-se-lhe à mão. E desprezando a sua própria dor, brincou e dançou, antes de descer da árvore. O bibó ficou muito contente. Então, a cobra-d’água volveu um derradeiro olhar ao filho e uma comovente despedida ao bibó, e pôs-se em direcção a leste.

O mesmo impiedoso sol. Chega o final da tarde, mas a terra está quente na mesma. O grande astro, a caminho do ocaso. Chega a tardinha. Põe-se o sol e some-se. Os seus raios vermelhos espalham-se pelo chão. A terra, que sempre a esta hora se apresentava tal qual uma noiva, parece hoje muito enferma. A cobra-d’água volta a andar e sempre a lamentar esse triste estado ambiental. Passa o lusco fusco e vem a noite, e ainda a aurora. Entretanto, a cobra-d’água, sonolenta, não se atreve a repousar: que será dela se inesperadamente cair num sono profundo? Tinha de chegar quanto antes àquela lagoa…. Ó esperança, já algum dia esqueceste alguém?

Mais um meio-dia; e o mesmo calor ardente! A cobra-d’água segue o seu caminho, sem o mínimo de descanso. Passa o meio-dia e vem o crepúsculo… Que é isso? Como secaram assim as plantas! De todos os lados parecem elas uns postes desnudados, e ainda no meio delas, umas plantas viçosas! Espanta-se a cobra-d’água, mas não se deixa ficar por lá.

… Era esta a tal lagoa! Haviam sobrevivido as plantas, só por estarem à sua margem! Seja como for, a cobra-d’água chegou! E então, que límpida essa água! Fica a cobra d’água a admirá-la por uns momentos. Logo depois, saindo do seu transe, vai até à beira da água. E quando a ia tocar com a sua língua sequiosa, lembrou-se do marido. Morrera precisamente ao beber água!… E dos filhos – haviam deixado o mundo angustiados por falta de água para beber!… E morre o bibó por não haver água – anseia morrer, mas vive só porque lhe não vem a morte.

Escurece. Com passos suaves, vem a noite. A cobra-d’água avança. Mergulha-se na água; há dias que não a via! Bebe até dizer basta; dança, brinca, nada, cai de sono… e dorme.

Splash! Splash! Desperta a cobra-d’água, intrigada com esse som logo à aurora, e vê lá gente! Cheia de medo, afunda rapidamente a cabeça; e quando a retira, vê um jorro de água a encher um camião-tanque. Assusta-se! Em tempos, vira bombear a água duma várzea. Que raio de seres humanos! Só Deus sabe como descobriram essa lagoa! Irão levar esta água e dentro em pouco não haverá mais! E… e… depois –

Baixa o nível da água; reduz-se a metade; e logo resta lá muito pouca… E –

‘Ei! Vejam aí, uma cobra-d’água!’ grita alguém.

‘Traz-me um pau!… Anda cá….’

A cobra-d’água cerra os olhos. Tem saudades do marido e sente-se feliz por saber que vai ter morte igual à dele. Tem saudades também dos filhos – foi bom terem partido antes dela! E aquele bibó! Deve estar ainda a aguardar a morte! Porque não vem a morte….

‘Ai!’

‘Valente! Foi um golpe de mestre!

 

Publicado na Revista da Casa de Goa, Série II, N.º 7, Nov-Dez 2020