Tiklem

Conto de autoria de Willy Goes | Traduzido do concani, por Óscar de Noronha*

“Ó burro, pense um bocadinho, seu animal! Ó seu búfalo, faça uso do seu bom-senso, se é que lhe resta algo! Ó seu boi, estão a desmanchar-se todas as propostas de casamento que a sua irmã recebe. E sabe quem é a causa disso? Você!” disse a mãe ao Brikston, dando-lhe um forte puxão de orelhas.

Brikston reagiu com tanta raiva, difícil até de imaginar. E por quê? Não porque tivesse sido chamado burro ou boi, mas porque a mãe lhe deu um puxão de orelhas.

“Não sou rapazola de dez anos, para estar assim a dar-me um puxão de orelha,” disse o filho.

Brikston tinha vinte e oito anos… não se sabendo se se devia considerá-lo moço ou homem. Era bem instruído, mas a sua bebedeira lhe estava a dar cabo da vida. Era dono de um táxi, mas em vez de ele o conduzir, para melhores lucros, deixando o táxi a cargo de um motorista, ficando ele o dia todo sentado a beber na taverna. Este não dava conta do dinheiro ganho; e, por sua vez, o dono contentava-se com a receita desde que lhe assegurasse a sua garrafa.

“Ó mãe, com esse forte puxão de orelha, agitou a minha cabeça e me causou muita raiva! Por isso, pare de falar, antes que eu expluda como um vulcão,” disse em tom de ameaça.

“Ó, você e a sua raiva, meto-os numa lata. Ora, você é bêbado. Não temos medo da cobra feita de folíolo nem da fúria de um bêbado. Oiça agora o que eu lhe tenho a dizer. A sua irmã recebeu uma proposta de casamento. O noivo é empregado do Estado. São quatro irmãos; e este é o mais novo. São três rapazes e uma rapariga. A irmã é tikli – nasceu após três rapazes. Os dois mais velhos já são casados. O noivo está resolvido a não casar enquanto não case a sua irmã,” disse a mãe a Brikston.

“Ó meu Deus! Então, por ser tiklém, esta coitada vai ficar solteira. Ninguém casará com ela; nunca se realizará o seu casamento nem o do irmão. Rejeite a proposta, e veremos outro noivo para a nossa Florishka,” sentenciou o Brikston, como se não houvesse dificuldade alguma em se achar noivos.

“Ó seu boi, quem vai achar outro noivo? Porventura, estarão eles à venda no mercado? A família convidou-nos a ir hoje à sua casa. Diz que enquanto a irmã não achar noivo, ele quer ficar seguro de noiva. Eu estou já velha, é sua responsabilidade casar a sua irmã. Vá com ela à casa do rapaz,” ordenou-lhe a mãe, acrescentando: “E não se embebede. Se não, pode ele rejeitá-la por ser irmã de bêbado. É o que tem sucedido em casos desses.”

“Bom, farei como a mãe quer. Vou levar a Florisha à casa dessa gente; e também verei se a irmã do rapaz encontra noivo,” disse Brikston, tomando sobre si a responsabilidade de casar a irmã.

Brikston e Florishka chegaram à casa do potencial noivo. Foram bem recebidos, sentaram-se e estiveram a conversar. Stanzar, o noivo, era funcionário público do Upper Division Clerk - UDC. Não tinha vícios de fumar nem beber. Pela conversa, via-se claramente que Stanzar se simpatizara com Florishka. A sua irmã constituía o único impedimento: ele não casaria antes de ela se casar.

“Onde está a sua irmã? Podemos conhecê-la antes de partirmos?” perguntou Brikston a Stanzar.

“Sem dúvida, não deixem de falar com ela antes de partir, e vejam se lhe acham noivo. Mas só vos previno: ela é tiklém: nasceu a seguir a três irmãos,” explicou Stanzar. “Trishka… Trishka, anda cá.”

Vindo ao encontro dos hóspedes, Trishka cumprimentou-os com uma risada. Era bem-parecida, de tez clara, de estatura mediana. Tinha sempre um riso na cara e porte jeitoso. Era de encher a vista. Logo que a viu, Brikston ficou estupefacto, preso ao seu lugar, porém, como se a levitar. Dentro do seu peito, o coração palpitava sem parar.

“É esta a sua irmã? Como é seu nome?” perguntou Brikston, embora apenas há uns momentos Stanzar a tivesse chamado pelo nome.

“Trishka. O meu nome é Trishka. E o seu?” perguntou suavemente.

Ouvindo essa voz tão doce, Brikston levantou-se e, aproximando-se da Trishka, disse, estendendo-lhe a mão: “O meu nome é Brikston. How do you do?

“Nice name. I am fine, thank you.” respondeu Trishka, apertando a mão.

Após mais dois dedos de conversa, Brikston levantou-se, passou uma vista de olhos por todos, e dando uns passos em direcção de Stanzar, despediu-se com um aperto de mão.

“Não sei se você gostou ou não da minha irmã, e nem me preocupo com isso. O facto é que gostei da sua irmã, Trishka. Poderíamos conversar mais sobre o assunto, o mais cedo possível, em minha casa. Por hoje é só. Vamos embora. Mog asum di.” E dito isto, partiram.

“O quê, seu bêbado! Você deu a palavra a essa tiklém? Antes disso, devia pelo menos consultar-me, seu animal! Não sabia que ela é tiklém? Quem se casa com uma tiklém?! Uma vez boi, sempre boi.”

Dito isso, a mãe de Brikston ia dar-lhe um puxão de orelha, quando ele, segurando a sua mão, impediu-a.

“Diga o que quiser, mas não me puxe a orelha,” disse Brikston terminantemente à mãe, apontando o dedo no ar. “Isso de tiklém-biklém não me interessa. É tiklém não por culpa própria! Coitada, nasceu depois de três irmãos. Que mal há nisso? Não presto atenção a essas superstições. Se isso de ser tiklém-biklém lhe interessa, isso é lá consigo. Vou casar-me com Trishka, and that is final!” disse Brikston firmemente.

“Tens alguma coisa a dizer, querida, a respeito da decisão do nosso bêbado?” perguntou a mãe, dirigindo-se à Florishka.

“Mãe, em primeiro lugar, pára de lhe chamar bêbado, boi, burro… Tu mesmo lhe deste o nome de Brikston, então porque lhe chamas de bêbado, boi, burro…. Quanto mais lhe chamares de bêbado, mais ele beberá. Chama-lhe pelo nome próprio, com carinho, e vê lá como ele vai mudar. Em segundo lugar, já que ele escolheu noiva, deixa-o casar com a rapariga. Isso de tiklém-biklém é cantiga.”

É claro que a mãe não gostou do que ouvira da boca de sua filha Florishka.

“Já percebi. Disse o rapaz não casará sem que a irmã fique arrumada: é por isso que tu estás a apoiar o teu irmão! Se por casar com a tiklém lhe vier a acontecer algo, seja a ele ou a nós, serás tu responsável. Percebeste?” disse a mãe, furiosa.

Correram os dias no meio dessa polémica, mas Brikston, sempre intransigente, casou com Trishka. Um mês antes, haviam casado os respectivos irmãos, Florishka e Stanzar.

O casamento de Brikston com a tiklém provocou grandes prejuízos a muitos co-aldeãos, ou seja, às tavernas, pois, Brikston parou de se embriagar e nem sequer suportava o cheiro a álcool. Mais, ficou desempregado o motorista do táxi, pois Brikston tomara-lhe as rédeas, vindo a ganhar rios de dinheiro. Aos poucos, teve meios para adquirir mais dois carros de praça, de modo que, em três anos de casado, já tinha três carros em casa, um conduzido por ele próprio e os outros dois entregues a motoristas da sua confiança. Estes prestavam contas regularmente. Além disso, Brikston consertou a sua casa e investiu dinheiro no banco. E assim se tapou a boca da mãe.

Ao fim de cinco anos de casamento, o casal tinha já três filhos. E estando grávida pela quarta vez, a mãe de Brikston aguardava a sua hora, ela que há tantos anos esperava que lhes viesse algum azar por via da tiklém. Efectivamente, nasceu-lhes uma menina, uma nova tiklém.

“Já viu isto? Já lhe tinha prevenido para não casar com a tiklém. Veja como a tiklém nos trouxe uma nova tiklém, como não podia deixar de ser... e quem casará com ela?” – desafiou a mãe ao Brikston.

“Ó mãe, esta criança, coitadinha, acaba de nascer. Quando ela crescer e estiver na idade de casar, encontrará um outro como eu; e tal como a presente tiklém me trouxe grande felicidade, também esta nossa fará o mesmo. Entretanto, a mãe faça votos para que chegue a ver a felicidade da recém-nascida.”

 * Nota do Tradutor: Embora a língua concani modernamente se escreva sem acentos ortográficos, vai acentuada a palavra tiklém só para indicar a pronúncia adequada aos leitores portugueses.

Sobre o Autor 

Willy Goes (1963-) é contista e autor de nove livros, sete em concani e dois em inglês. Actualmente é o Director do Goa College of Art. Foi membro do Conselho Consultivo do Concani na Sahitya Akademi, Nova Delhi. Apresentou trabalhos em seminários e ganhou prémios pela escrita criativa e fotografia.

Publicado na Revista da Casa de Goa (Lisboa), Série II, No. 23, Julho-Agosto de 2023, pp. 57-62  https://rb.gy/8qj52

Ligeiramente editado neste blogue.

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Mauzó recebe o galardão Jnanpith

Foto cortesia de: The Times of India (Goa) https://rb.gy/yk1z1

My language has never let me down," says Writer Damodar Mauzo

"A minha língua nunca me decepcionou," disse o escritor Damodar Mauzó.

Reportagem de Brian de Souza | Traduzido do inglês por Óscar de Noronha*

No seu discurso de aceitação do galardão Jnanpith, Damodar Mauzó discorreu sobre as suas inspirações criativas; sobre o que lhe representa o concani; e a necessidade de criar uma atmosfera que garanta a liberdade de expressão.

“Inspiro-me na minha terra natal, no meu povo e na minha língua”, disse Damodar Mauzó no seu discurso de aceitação do prestigiado prémio literário Jnanpith que lhe foi conferido, relativo ao ano de 2022.

Mauzó recebeu o galardão após a leitura da citação, numa cerimónia muito concorrida, realizada no Raj Bhavan, residência oficial do governador de Goa, P. S. Sreedharan Pillai, em maio de 2023.

“Na expressão das minhas ideias, a minha língua nunca me decepcionou”, reiterou Mauzó, de 78 anos, no seu discurso. Essas palavras captaram a essência da sua longa caminhada com a língua concani, que disse que ama e a qual, por sua vez, muito me ama”.

Então, por que escreve Mauzó? Disse sucintamente: “Escrevo porque tenho algo diferente a contar e/ou a contar algo diferentemente”.

É apenas o segundo escritor da língua concani a receber este prémio; o primeiro foi o falecido Ravindra Kelekar, quem Mauzó cortesmente reconheceu como seu mestre. Kelekar liderou o movimento literário goês no pós-1961.

A obra literária de Mauzó é vasta e inclui vários géneros. Na sua carreira de 50 anos, publicou 6 colecções de contos, quatro romances, dois esboços biográficos, livros infantis e um grande volume sobre a saga do concani, no qual descreve as dificuldades sofridas à conta dos sequazes da língua durante o regime colonial português.

Mauzó publicou a sua primeira colecção de contos, Ganthan, em 1971, porém, foi só em 1983 que alcançou fama pelo país inteiro, com o romance Karmelin, sem dúvida, a sua obra mais conhecida, com a qual venceu o prémio da Sahitya Akademi. Nesse romance, Mauzó destaca as lutas de uma goesa que, para o seu ganha-pão, se desloca para o Médio Oriente. Escrito no auge da emigração goesa para o Golfo Pérsico, foi bem recebido e traduzido para 14 idiomas. É uma obra seminal sobre a experiência goesa nessa parte do mundo.

Dizendo-se um leitor voraz, Mauzó também prestou homenagem, entre outros, a escritores como Mahasweta Devi, José Saramago e M. T. Vasudevan Nair, os quais disse admirar. Também reconheceu a influência de Saratchandra Chattopadhyay, escritor bengali, que, segundo Mauzó, falou da sua dívida para com os necessitados (“suas lágrimas e desamparo”), que dão tudo, mas não recebem nada, e de Charles Dickens, que citou para “afirmar a sua crença (de Mauzó) no amor e na compaixão”.

A musa criativa de Mauzó foi sempre o homem comum goês, retratado tão eloquentemente no romance Karmelin, enquanto os temas das suas obras incluem o género, a casta, a religião e outros aspectos da condição humana. Como parte desses temas, a sua obra investigou a migração, o turismo e a mineração, que até hoje têm relevância em Goa, pois são questões debatidas no domínio público.

Mauzó referiu-se ao percurso literário do concani que, segundo ele, “sofreu golpes tremendos às mãos da sua história”. Isso também é algo que ele experimentou em primeira mão como membro do comité director do Konkani Porjecho Awaz (Voz do Povo Concani) de Goa, pois sofreu várias pauladas da polícia enquanto se debatia para que o concani viesse a ser conferido o estatuto de idioma oficial.

Enquanto as suas realizações literárias o colocaram sob os olhares da opinião pública, a sua paixão pela liberdade de expressão também veio a conferir-lhe grande projecção quando veio à tona uma ameaça à sua vida, após o assassinato da jornalista-activista Gauri Lankesh. Mauzó era então dirigente do Dakshinayan Abhiyan, um movimento lançado contra a discriminação de castas e ataques à intelectualidade e ao racionalismo.

Nada disso teria diminuído o espírito de Mauzó, pois continua a escrever e aparecer regularmente em festivais literários, incluindo o GALF (Festival de artes e literatura de Goa), do qual ele é co-fundador e co-curador.

Nascido em 1944 na Goa portuguesa, ora Estado da Índia, Mauzó fez os seus primeiros estudos, até o primeiro grau, em português, conjuntamente com os estudos primários em marata, tendo depois ido para Bombaim, onde se formou pelo PA Podar of Commerce. Começou a escrever no final da adolescência e continua a fazê-lo, não conhecendo outra ocupação além da loja que dirigia até recentemente.

Era mesmo de esperar que, ao encerrar o seu discurso, Mauzó, ou Bhaiee, como é carinhosamente apelidado esse lutador apaixonado pela liberdade de expressão, se pronunciasse sobre esse direito humano vital. Servindo-se da analogia das rodovias, que ora estão a ser construídas pelo país, afirmou que também há necessidade de “uma rodovia que suavizará o ritmo acelerado da literatura, eliminando obstáculos mentais dos escritores, fortalecendo as pontes de traduções e criando uma atmosfera encorajadora para a liberdade de expressão”.

* Publicado na Revista da Casa de Goa, Lisboa, No. 23, Serie II, Julho-Agosto de 2023, pp 45-48 https://rb.gy/8qj52


A Noiva

Vhokol - um conto de Olivinho Gomes traduzido por Óscar de Noronha - A Noiva

As férias judiciais atrasam os trâmites dos processos. Igualmente, o tabelião da comarca fica atarefado com montes de escrituras e doações, a distribuição das diligências e a sua devida passagem para o papel na forma legal deixa o pessoal muito atarefado.

Os tribunais haviam reaberto apenas na véspera. E numa cidade como Margão, onde o meu cartório era o único, estava eu ocupadíssimo, como sempre, quando se deu o incidente que ora vou contar.

Devia ser por volta do meio-dia e meio. Logo em frente ao meu cartório parava um carro do qual saía um cavalheiro jovem e janota. Veio pressuroso até a minha porta e pediu-me licença para falar. Notando esse quê de urgência, disse-lhe que entrasse.

Tendo ouvido tudo o que me contou, vi-me obrigado a interromper o trabalho e acompanhá-lo. Em poucos minutos, contou-me a história de uma senhora, que disse ser sua prima direita. Vivia enclausurada em casa e ora desejava lavrar a declaração da sua última vontade. Como não regulava bem, era necessário cumprir de imediato o seu desejo, de contrário enfurecia-se e era capaz de tudo. Queria ela que eu viesse urgentemente à sua casa.

Fui com Caetano, de carro. A casa situava-se num bairro interior da aldeia da Raia. Levou-nos meia hora a percorrer esse caminho, de voltas e reviravoltas, para chegar ao destino.

Como é que descrevo essa habitação? Não era uma simples casa; era um palacete. Sabe Deus de que século! E parece nunca ter sido tratada. Estava bem nos tempos passados uma construção embrenhada no meio de árvores de teca. Ora, via-se pedaços do reboco de cal caídos no chão, que deixavam expostas as pedras vermelhas. O resto da casa estava às escuras, parecendo prestes a ruir.

Subimos a escadaria meia quebrada e com limos. Caetano gritou por alguém. Apareceu então uma empregada, que trazia na mão uma vela acesa. Com as janelas todas fechadas, era escuro o interior do casarão. Eu, levando a pasta na mão, e com o mínimo de falas, fui pela casa adentro, junto com Caetano, à luz dessa vela.

Caetano arredou a cortina dum compartimento, que não era muito grande; deu-me para passar aí uma rápida vista de olhos. Quando me dei conta da situação, caiu-me o coração aos pés. Nessa casa, toda fechada, ficavam acesas o dia inteiro as velas dos candelabros da parede. Sobre uma mesa lá no canto estavam colocadas umas coisinhas. Aqui e acolá, estavam dispersos frascos de perfume, ganchos de cabelo, pentes, toalhas, lenços, espelhos... e numa cadeira encontrava-se sentada uma senhora, que fitava, murcha, e vestida de branco. Era o traje do seu noivado, que com o tempo se tornara amarelado, desbotado, manchado. Tinha aliás, o seu rosto, crestado pelas rugas, empoado. Calculo que ela não devia passar dos quarenta e tal anos. À sua volta, as aves haviam construído ninhos cobertos com as suas penas.

Apesar de ter entrado no quarto com Caetano, em bicos dos pés, os meus passos causaram-lhe sobressalto. Os seus olhos arredondados, sempre a fitar, mediram-me. Embora parecesse aliviada com a minha chegada, abriu ainda mais os olhos e, de súbito, soltou uma gargalhada danada, e gritou:

- Ha... ha… ha… lá vem o meu noivo. É esse mesmo, esse mesmo. É com ele que me vou casar. Vem ao pé de mim, meu senhor, meu amor. Estou à tua espera, ha… ha… ha...

Cobri-me de suor frio ao ouvir esse riso louco que me eriçou o pelo. Fiquei de alerta. A minha longa experiência de advogado e tabelião público não permitiria que me deixasse levar pela emoção. Ainda assim, senti-me um tanto atrapalhado e com a língua presa.

Procurei acalmar-me, e depois de me recompor, interpus as mãos dela nas minhas, e disse, carinhosamente:

- Não se preocupe, D. Rosa, sou o notário Armando Gomes da Costa. Diga-me, por favor, o que pretende; não se atrapalhe…

Mal ouviu essas palavras, mudou de semblante. Corou, e já não parecendo a mesma, segredou a sua vontade: a de passar as suas propriedades para o nome de Caetano, seu primo direito. Nada disse sobre o porquê e como. Autorizou-me a consultar Caetano. E disse terminantemente que queria que eu lavrasse aí e agora o seu testamento…

Ainda bem. Estava morto por sair da sua presença. E fi-lo juntamente com Caetano.

Sentámo-nos num quarto lá dentro. Na verdade, todos os compartimentos eram lúgubres, porém, este era melhor do que os outros, pois tinha pelo menos uma janela aberta. Logo que nos sentámos, a empregada serviu-nos o almoço e a seguir Caetano contou-me a história da sua prima Rosa.

Rosa Esmeralda das Dores da Silva, filha única, foi alvo do carinho e amor dos seus pais. Era bem-parecida, prendada, inteligente e afectuosa. Aos dezasseis anos de idade, passou no exame de acesso à universidade, seguindo depois para Bombaim para prosseguir os estudos superiores, pois, na altura, não havia colégios universitários em Goa. Era então uma moça que dava nas vistas; não havia rapaz que não se sentisse atraído por ela. Por outro lado, ela não caía por todo e qualquer, nem era de dar muita confiança.

Em Bombaim, matriculou-se no National College, de Bandrá, e fixou moradia na casa de algum conhecido. Em pouco tempo circulava o seu nome pela boca do povo. Era a primeira aluna da turma; como dançarina, não havia igual; e na beleza, era deslumbrante. Muito moço havia estalado os lábios. Como regra, escrevia para casa pelo menos quinzenalmente.

Sucedeu que, após uns sete ou oito meses, uma carta sua entristeceu os pais. Estes, porém, não tinham a coragem de contrariar a filha. Eis o que Rosa lhes escreveu: que viera a conhecer um simpático moço com quem andava enamorada. O rapaz era oriundo do norte da Índia, provavelmente, do Punjabe. As cartas dos seis meses que se seguiram só contavam maravilhas do rapaz: dos bailes a que assistiram, das praias balneares que frequentaram, dos filmes que viram; ao mesmo tempo que pedia novas remessas de dinheiro.

Passado algum tempo, chegava uma carta ainda mais triste. O rapaz, deixando o colégio e a cidade de Bombaim, regressara à sua terra natal, sem a Rosa saber a quantas andava. Numa palavra: ele a havia deixado. Correu ainda que Rosa pretendera suicidar, tendo alguém impedido de o fazer. Foi quando o pai foi buscar a filha de Bombai, e ela passou o ano inteiro em casa. Era manifesta a mudança que sofrera: já não tinha a antiga alegria de viver. Até parecia cansada da vida!

Apesar disso, daí a tempos, com renovado entusiasmo, regressou a Bombaim. Criou novas amizades. Aliás, era esse o seu intuito: travar novas relações, que, na verdade, teve com vários. Parecia-lhe de todo impossível deixar a vida da paródia, a que estava já habituada. Uma vez adquirido um hábito, sobretudo mau, ele torna-se um vício. Mas no meio de toda essa vida desregrada nunca teve sequer um cheirinho da felicidade, pela qual estava sequiosa depois do malogro do seu primeiro amor. Há rapazes que estimulam as emoções femininas, aproveitam-se delas, para no fim as deixar desapontadas. Ser vítima de semelhante infortúnio é o flagelo da moça. Por outro lado, quanto mais ela se defende de tais ciladas, mais cresce a estima e a consideração das pessoas. Mas, no verdor da juventude, poucos se apercebem disso, como também não conseguem discernir entre a paródia ingénua e a maliciosa.

Não deixei que continuasse o sermão.

- Tudo o que diz é pura verdade, senhor Caetano. Mas a mim interessam só os pontos essenciais, ou seja, os passos principais da vida dela. Conte-me só isso, pois quero avançar o testamento. Se não, ela lança-se contra mim…

- Peço desculpa, senhor doutor! Como dizia… é verdade.... – continuou Caetano, retomando o fio da história:

- À Rosa apetecia lançar o barco da vida no alto-mar, sem vela, nem remos, nem leme, ao mesmo tempo que, no meio das águas tumultuosas, procurava ancorar nalgum porto. Por fim, com vista num moço, escreveu a dizer: este é o meu noivo de certeza. Correu que era de Mapuçá; rapaz bem posto, de boas famílias.

O rapaz veio até a Raia para se apresentar aos pais de Rosa. Saiu aprovado. Foi marcado o casamento para daí a um ano, a 15 de janeiro de 1943.

Rosa regressou de Bombaim um mês antes do casamento, tendo completado o bacharelato em letras. Sentia-se tranquila, esperando passar alegremente o resto da vida na companhia do marido. Seria uma vida despreocupada, pois a riqueza da família lhes bastava para mais duas gerações. Importava-lhe apenas deixar o passado e pôr os olhos na construção do futuro. O noivo estava em Bombaim; e, em Goa, talhavam-se as roupas de casamento. Entretanto, o noivo anunciou por carta que chegaria no dia 13, o que deu lugar a dias de grande alegria para todos.

Quando viram que estava iminente o casamento da amimada filha única do batecar, também os manducares do prédio rural deram início a festejos. As suas vojem, dennem e denngui – consoadas – encheram a casa do proprietário. Como o pai da noiva já não pertencia aos vivos, os manducares mais velhos tomaram sobre si os arranjos do casamento, o que facilitou bastante a vida da bhattkan.

Quando o noivo veio à Raia, todo o prédio se encheu de contentamento. Encontrou-se com a noiva, com que acertou tudo: daí a dois dias iam-se casar, sendo a missa às dez da manhã, na igreja da Raia. Assente isso, declarou que seguia a Mapuçá.

Continuaram os preparativos pela noite fora. A manhã do casamento raiou no meio de alegre bulício. Minha prima direita, ora uma bela recatada, que vestira com grande ânimo o seu traje de noiva, estava já pronta. Que linda que ela parecia no seu vestido, bem-talhado e engomado, branco como a neve! Era o seu dia de maior júbilo. E chegou a hora da saída…

Ora, devia faltar um quarto para as dez. Aparecia o carteiro com um telegrama que tomámos como de felicitações. Era para a Rosa. Fui eu a abri-lo e logo ela o arrancou da minha mão. Mal o leu, de acabrunhada pôs-se a dar socos no peito e a chorar aos brados. Estava estonteada; revirou os olhos; começou a tremer; desmaiou, e antes que a segurássemos, caiu ao chão.

O telegrama dizia o seguinte: “Não posso vir ao casamento. Esqueça-me.” O remetente: Eduardo (nome do noivo). Trazia o endereço de Bombaim. E que remédio, se uma traição dessas estava reservada à minha prima direita!

Quando voltou ao siso, Rosa não pôde mostrar a sua linda cara. Estava fora de si. Desde então tem estado encerrada nesse quarto fechado, com a mente também fechada. Mesmo assim, não perdeu a esperança que tinha no seu noivo. Todo e sempre, vestida de mulher prometida em casamento, tem estado à sua espera. Até hoje. Toma banho em dias alternados e traja o mesmo vestido de noiva, e, toda empoada, fica aí sentada a essa mesa e a aguardar a chegada do noivo. De facto, está fora de si. Às vezes, num ímpeto, levanta-se e põe-se a andar; brama ou guincha, fala em voz alta, ou à toa. Só Deus sabe que pensamentos a atormentam! Desse noivo cruel, porém, nunca mais se soube o paradeiro. No meio dessa chocante marcha de eventos, morreu-lhe a mãe, ficando Rosa sozinha, a chorar as mágoas da vida. Dêmos graças a Deus que ela não tenha suicidado, embora a vida lhe tenha sido um lento suicídio.

Com essas palavras, terminava Caetano essa história dramática, que me golpeou o coração. O desgosto da Rosa tornou-se meu também. Ninguém sabe o que pode resultar das nossas acções e quão amargo pode ser o fruto: só de pensar nisso quase que me ia passar despercebida a diligência que ali me havia levado.

Não lhe consegui lançar novamente um olhar. Estava eu a verter lágrimas. Que rapariga modelar, educada num ambiente de alegria, e que ora se encontrava nesse infeliz emaranhado da vida! Haviam-se passado anos e ela envelhecera prematuramente. Não se podia prever a hora em que apagaria essa vela mortiça, deixando a casa às escuras. Por isso, almejava ela reavivar essa vela, o que tornava urgente esse testamento.

Lavrei rapidamente o testamento e com gentileza obtivemos a sua assinatura. E travando a catadupa de lágrimas, com um coração pesado e a mente reflectindo sobre as malhas da vida, saí do sítio o mais depressa possível. Ficou, porém, comigo a imagem triste dessa eterna noiva que nos tempos que já lá vão foi tão bela: ela destroça-me o coração e me persegue eternamente.

Notas Biográficas 

Olivinho Gomes (1943-2009) foi concanista de renome, alto funcionário público, e, mais tarde, professor catedrático de concani, na Universidade de Goa. Autor de mais de 40 livros, poeta, contista e tradutor, verteu a Mensagem de Fernando Pessoa e Os Lusíadas de Luís de Camões para a língua concani, respectivamente, sob os títulos de Sondex e Lusiyatonn.

Traduzido do concani e publicado na Revista da Casa de Goa, Serie II, No. 20, Jan-Fev de 2023


Correspondência epistolar de Shankar Ramani

Por ocasião do centenário de nascimento de Shankar Ramani, traduzi uns trechos da sua correspondência epistolar em concani, publicada pela Revista Zaag (Vol. 32, No. 1, Agosto de 2005, pp. 20-22), da direcção de Ravindra Kelekar, e aos quais acrescentei notas de rodapé.

Sem data

Prezado Sr. Gajanana Jog[i]

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De volta da escola, passávamos pela casa do Sarmalcar. Sada Sarmalcar[ii] era amigo de meu Pai. No vaivém da escola, dizia ‘Lá vai o fraco pugilista Ramani.’ Depois disso eram as casas do dr. Edu Poi[iii], Namtu Poi Dhungat[iv], Prof. Araújo Mascarenhas[v], e no fim da rua a grande casa do magnate Dempó[vi]. Eram casas ligadas. De entre elas, ficava a casa do proprietário Dattá, e ligada a ela a de Padmanata Xette. Em frente à casa do proprietário Dattá, no fim da rua, depois das casas de Ramachondra Xette, D. B. Desai, o rato do Neurencar, via-se a uma fila de casas de Pundolica Camotim[vii]. Essa era outra rua. Antes de esta começar, à esquina, havia um poste. Ao cair da tarde, um empregado da Câmara era obrigado a pendurar nele um petromax aceso.

A rua que passava pela escola ia direita à praça de automóveis. Aí se situavam as lojas de roupa e de confeitos. A rua que tomávamos de volta da escola ia direitinha ao cemitério de Santa Inez[viii]. No caminho, depois de Dom Bosco[ix], na mesma rua ficava a máquina de descasque e outra de fabrico de gelo de um parse[x]. Aquela era manejada por um indivíduo de nome Xencor. O parse era amigo de meu Pai. Quando fossemos lá, o parse ordenava ao Xencor que me desse gelo. Era uma máquina muito conhecida. Na traseira havia uma casa de balcão onde sentava a notória mulher pública, Saku. Gorda, sentava-se vestida de maneira coquete. Além de jovens liceístas, de dezassete ou dezoito anos, eram seus clientes grandes advogados e comerciantes, segundo me disse, na altura, Kamlakar Nagorcencar[xi]. E era verdade.

Até o ano de 1938, a cidade de Pangim se estendia dos Correios até à casa do Dr. Govinda Vaidia[xii]. A zona adiante fazia parte da aldeia de Taleigão[xiii]. Foi por isso que, até 1938, Soku ocupou esse balcão sem receio. Logo depois, veio um novo Governador, José Cabral[xiv]. Homem inteligentíssimo, mas ateu. Promulgou uma nova lei a estender os limites da cidade para além do cemitério. Em consequência, chegou a hora de mudar de casa. Para onde iria? Adiante, era tudo crematório. Já antes das cinco da tarde, a gente tinha medo de passar pelo cemitério. Um advogado que era cliente da Soku deu-lhe, porém, uma ideia. Soku fez logo um requerimento, enviando-o directamente ao Governador Cabral. Eis o conteúdo: “Trabalho como prostituta, servindo assim a sociedade. Não só isso, até dou um desconto aos alunos do Liceu.” O Governador foi esperto. Logo que leu esse requerimento de Soku, despachou: “Quem tem arte, faz vida em toda a parte.”

Por hoje é só.

Se me der na bitola, escreverei de novo.

Espero a sua resposta.

Como sempre,

Shankar Ramani

24.8.1995

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Até o ano de 1928, não havia luz eléctrica em Pangim. Em certos cruzamentos ardia o petromax a noite inteira. Em 1929, veio a corrente eléctrica. O Governo enviara dois engenheiros para tratar da instalação de postes e de uma central eléctrica[xv]. Um deles era alemão, outro parse. Quando passavam os fios por cima dos postes, lembro-me de lhe ouvir dizer: ‘Ó, pá; ó, pá’. No dia em que Pangim veio a ter electricidade, toda a gente se pôs a passear pela cidade. Eu, o Kamlakar e o Casimiro Monteiro[xvi] vadiámos até às dez da noite.

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27.8.1996

Prezado Sr. Jog

No ano de 1933 passei o Primeiro Grau com a nota de ‘Bem Habilitado’. Em junho de 1938, meu Pai matriculou-me como interno numa escola oficial. Ia-se à escola pelo recinto do Liceu. Descendo os degraus, chegava-se ao pé da Igreja. Depois, dando volta ao jardim, passava-se pelo Cine-Teatro Nacional[xvii] e o Quartel da Polícia[xviii]; e logo então, dobrando a esquina da Biblioteca Central[xix], chegava-se à nossa escola, que abria às 8,30 da manhã. Às 10,45, tínhamos um intervalo de 15 minutos. Nessa altura, chegava minha mãe, trazendo pães redondos, bem cortados, com manteiga caseira e açúcar, para eu comer, e café para beber. Eventualmente, se ficasse com muita fome, ia eu ao mercado na vizinhança onde comia gelebis[xx] de valor de um poiçá[xxi]. Um pouco além era o Campal. Na aula, sentava-me ao pé da janela. Eram dois alunos em cada banco. O outro era o mestiço Hugo Mendes. Não estudava nada. Era só esperteza saloia. O nosso professor chamava-se Frutuoso[xxii]. Um bom homem. Excelente professor. A janela dava para ver os vapores que faziam carreira entre Pangim e Betim[xxiii].

Nos primeiros seis meses, à parte o desenho, tive boas notas em todas as disciplinas. Infelizmente, por um mês sofri um ataque de sarna nas mãos. Nos primeiros dias, o professor deixou-me sentar sozinho num banco lá fora. Depois, fui proibido de vir à aula até curar a sarna. Perdi assim um mês e meio a dois meses. Enquanto me restabelecia, eram os dias de exames. Saí aprovado. Perdi a nota de Distinção. Precisamente nesse ano o meu Pai foi transferido para Mormugão. Entretanto, enviou os filhos para a aldeia de Durbate[xxiv], onde construíra uma casa.

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[i] Gajanana Jog é um eminente contista na língua concani.

[ii] Sada, diminutivo de Sadananda, Sarmalcar era livreiro, com loja ao pé do templo Mahalaxmi, em Pangim.

[iii] Edu Poi, de nome complete Roguvira Sridora Poi Vernencar, descendente do antigo Malú Poi Vernencar, líder da comunidade hindu dos tempos do conquistador Albuquerque, era um recorrido clínico em Pangim, com residência na antiga Rua Afonso de Albuquerque.

[iv] Comerciante de ferramentas em Pangim.

[v] Distinto professor do Liceu, advogado, escritor e poeta, de nome completo Joaquim de Araújo Mascarenhas

[vi] Abastado proprietário e homem de negócios.

[vii] Comerciante geral.

[viii] Um dos bairros e paróquias de Pangim.

[ix] A Escola Dom Bosco foi fundada em Pangim, no ano de 1942, no sítio onde existia o palecete do Conde de Nova Goa.

[x] Na altura, talvez o único parse estabelecido em Goa, de apelido Mody.

[xi] Advogado em Margão.

[xii] Médico-cirurgião, que, segundo me informou o poeta Madhav Borcar, fabricara um aparelho electrocardiograma, para uso próprio.

[xiii] Uma das aldeias do concelho das Ilhas, a qual deu guarida à frota de Afonso de Albuquerque.

[xiv] Um dos mais eminentes governadores da antiga Índia Portuguesa, no período de 1938-45

[xv] Na altura, situava-se na Rua Heróis de 5 de outubro, hoje Rua Atmarama Borcar.

[xvi] Agente da Polícia, transferido de Goa por ordem do juiz Severino Balula.

[xvii] Fundado como Éden Cinema, passou a ser denominado Cine-Teatro Nacional em 1933.

[xviii] Situado na antiga Praça das Sete Janelas, depois conhecida como Largo Afonso de Albuquerque.

[xix] Fundada em 1832, com o nome de Pública Livraria, passando ultimamente a ser denominada Biblioteca Vasco da Gama, ora Krishnadas Shama Central Library, transferida para a nova urbanização do Pattó.

[xx] Doce de tipo bobina suculenta

[xxi] Moeda indiana

[xxii] Talvez se refere ao professor José Egídio Fidelis Frutuoso de Souza, de Pilerne.

[xxiii] Bairro da aldeia de Verém, do concelho de Bardez, que se situa na banda norte do rio Mandovi.

[xxiv] Aldeia do concelho de Pondá, um dos portos de navegação fluvial onde a lancha Pangim-Sanvordém fazia escala e onde descarregavam os patamaris vindos do Canará e de outros lugares.

(Publicado na Revista da Casa de Goa, https://casadegoa.org/revista/ii-serie-n-o-19-novembro-dezembro-de-2022/

Série II, No. 19, Novembro-Dezembro de 2022)


O Popular Príncipe da Poesia Concani

ManoharRai SarDessai (1925-2006) foi professor de Francês nas universidades de Bombaim e Goa; editor de vários periódicos literários; presidente da conferência pan-indiana do Concani; tradutor de obras literárias e históricas; mas, acima de tudo, um dos maiores e mais queridos poetas da língua concani, graças à elegância da sua linguagem e à relevância dos temas que tratava.

SarDessai é tanto goês como cosmopolita, tanto príncipe quanto homem do povo. Nas suas palavras, ‘Hanv Gõycho ani Gõyam bhailo, udenticho ani ostomtecho: Sou de Goa e do além; sou do Leste e do Oeste’.

A sua poesia tem a toada da palavra falada. Foi, sem dúvida, feliz a sua ideia de passar a escrever em concani, sua língua materna além de lngua da terra, quando, aliás, a comunidade hindu prezava o marata como a sua língua de cultura.

Afirma o Poeta Madhav Borcar que a poesia de SarDessai divide-se em dois períodos: pré- e pós-1961, sendo este o ano da integração de Goa na União Indiana.[i] Neste período foi um dos responsáveis, junto com R. V. Pandit e C. F. Costa, por lançar as raízes da nova poesia concani.

Goyãm, tujea moga khatir [Por teu amor, ó Goa!] (1961) abarca, principalmente, a poesia que escreveu durante a estadia na França (1952-58).[ii] Fala com saudade das vozes e paisagens da terra natal e das alegrias e tristezas da vida campestre. Não admira que o seu lirismo tenha atraído a geração contemporânea de literatos.

Regressando de vez a Goa, teve várias intervenções na vida pública. O seu livro Zaiat Zage (1964) é uma forte expressão do seu sentido cívico.[iii]

É particularmente memorável a sua intervenção no destino político da sua terra aquando do histórico Opinion Poll (escrutínio da opinião), realizado em 1967: pôs todo o seu peso a favor da autonomia de Goa contra os planos integracionistas do estado vizinho do Maharashtra. Alguns dos seus mais patrióticos poemas datam desse período, altura em que eles estavam sempre nos lábios da gente.[iv]

SarDessai dirige-se ao grande público com facilidade, graças ao seu dom das línguas: exprime-se em concani, marata, francês e inglês, às vezes, traduzindo ele próprio os seus poemas. Mais significativo, porém, é o Poeta se ter tornado acessível ao público goês, a partir do ano de 1961, pois a escolha do alfabeto e a multiplicidade de dialectos os dividia. Fez questão de escrever em caracteres latinos e devanagáricos, construindo uma ponte entre os falares das comunidades hindu e cristã – como que uma língua franca.

Os poemetos de Zaiô Zuiô [Jasmim] (1970) e Pissolim [Borboletas] (1978) são caracterizados pela economia e precisão vocabular (cinco a sete versos). Ao segundo livro de poesia foi atribuído o Prémio da Sahitya Akademi (Academia indiana de Letras), em 1980.

SarDessai escreveu também poesia para crianças, sendo ‘Bebeanchem Kazar’ [O casamento dos sapos] o seu poema mais popular, pela rima e ritmo.

De igual modo, produziu poemas de louvor a Jesus e Maria. [v]

Os três poemas incluídos neste artigo falam do seu amor à terra e da sua filosofia da vida[vi] Na ‘Oração’, diz com toda humildade: ‘Que a minha aldeia se orgulhe/dos meus feitos, do meu nome,/ tanto basta para mim,/não almejo outro renome.’ Colheu, porém, muito mais: além da afeição do povo, os epítetos Lok Kovi[vii] (Poeta do Povo) e Konknni Kovirai[viii] (Príncipe dos Poetas concanis).

Gõycho Ambo

Gõycho ambo
Mhonva thembo
Gõychea polear
Bhangra tibo.

Gõychea ambeant
Chandnem asa
Suriachem kirnn asa
Amchea mogall zomnintlea
Amrutacho kollso asa
Zaia-zuiam poros dhatt
Gõychea ambeak ghomghomat
Bhurgeachea galaporos
Gõycho ambo rosroxit
Vhonklechea onttaporos
Gõycho ambo lusluxit
Halot, dholot, lozot, moddot
Pachvo podor angar gheta
Sotravem vors futtun
Gõychea ambeant rupak ieta.
Gõycho ambo rosall kovit
Gõycho ambo Gõychem jivit.

A manga de Goa

A manga de Goa
Um pingo de mel,
Um bocado de oiro,
A Manga de Goa.

Um disco da Lua,
uma réstia de Sol,
a Manga de Goa.
Um bouquet de champôs
e de cravos rubros,
a Manga de Goa.

Mimosa
como a face de uma criança,
Voluptuosa
como os lábios de uma noiva,
nossa riqueza,
nosso orgulho,
a Manga de Goa.

Sob o verde véu,
como o seio de uma virgem
na flor dos anos,
entre tímido e ousado,
a Manga de Goa.

Um poema de sumo,
Uma lasca de alegria,
a Vida de Goa,
A Manga, pomo de oiro.

 (Traduzido por Carmo Azevedo) [ix]

Gõy mhojem

Gõy mhojem vhonkol koxi
Panchvea chuddean bhol’leli
Gõy mhojem rat nilli
Noketranim ful’leli.

Gõy mhojem bhurgem koxem
Dongramche manddiecher
Gõy mhojem mogre-kollo
Doriache talliecher.

Gõy mhollear chitr ek
Indradhannun rongoil’lem
Gõy mhollear sop’n ek
Ugddasani vinnlelem.

Gõy mhojem kuberachea
Vozranchi ukti kudd
Gõy mhollear jivitachea
Zoitachi zollti chudd.

Gõy mhollear pavl ek
Dortorechi vatt mezpi
Gõy mhollear tan ek
Vixvacho tal sodpi.

Gõy mhollear konvlli odd
Kallzantlea kavteachi
Gõy mhojem vhoddli zodd
Zolmachea punneachi.

Minha Goa

Minha Goa é como uma noiva
de pulseiras enfeitada.
Minha Goa é noite azul
de estrelas matizada.

Minha Goa é como criança
entre montes passeando.
Minha Goa é botão de flor
à tona do mar vogando.

Goa é um painel
pelo arco de Indra colorido.
Goa é um sonho
de memórias tecido.

Minha Goa é corpo aberto
de riqueza diamantina.
Goa é um facho ardente
duma vida vitorina.

Goa é uma pegada
que os caminhos vai medindo.
Goa é sede sempre em busca
do fundo do mundo infindo.

Goa é ânsia juvenil
do âmago do coração.
Grande é o mérito de quem tem
de em Goa nascer o condão.

(Traduzido por: Jorge de Abreu Noronha)[x]

Magnnem

Sompem utor, saral mon
Itlem mhaka mellchem dhon.

Tambddo patt, pachvem pan
Itlo mhaka puro man.

Svarthachi virchim kupam
Itli mhojer korchi krupa.

Mhaka lagun ful’lo ganv
Itlem mhaka puro nanv.

Oração

Palavra de leveza
e mente sem paleio,
é isto o que eu anseio
como única riqueza.

De rubro lenho um banquinho,
folha verde de banana,
nenhum outro preito espero
ao longo do meu caminho.

Que se esvaiam no horizonte
essas nuvens de ganância:
seja apenas esta a graça
a adornar a minha fronte.

Que a minha aldeia se orgulhe
dos meus feitos, do meu nome,
tanto basta para mim,
não almejo outro renome.

(Traduzido por Jorge de Abreu Noronha)

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[i] Madhav Borcar, ‘Manoharraiali Kovita’, in Atthara Jun (Panaji: Goa Konkani Akademi, 2007), p. 160.

[ii] Doutorou-se na Sorbonne, apresentando a tese intitulada ‘Image de l’Inde en France’, cf. Edith Noronha Melo Furtado, Les Oeuvres de Manohar Rai Sardessai: Point de Rencontre entre l’Inde e la France (Delhi: Goyal Publishers and Distributors Pvt Ltd, 2014).

[iii] De entre outros poemas, escreveu ‘Hi Lokshay’ [Esta democracia], ‘Hundranchi sabha’ [Assembleia de Ratos], que ora fazem parte da antologia Atthara Jun, op.cit.

[iv] Entre outros, ‘Zaiat Zage’ e ‘Ailo Poll’ [Lá vem o Escrutínio].

[v] Entre outros, ‘Ball Jezu Zolmolo’ [Nasceu o Menino Jesus], ‘Khursachi Kanni’ [A História da Cruz], ‘Mhozo Jezu ailo porot’ [Voltou o meu Jesus], ‘Mari Matêk Ballok Zala’ [Teve um Menino a Mãe Maria]; e ainda em homenagem ao S. José Vaz: ‘Khõi Pavlo? Khõicho tum?’ [Donde vens? P’ra onde vais?]. Cf. My Song – Ma Chanson – O meu Canto (Goa: 2008).

[vi] Da escolha de Maya SarDessai, filha do Poeta, a quem agradeço; tirados da colectânea My Song – Ma Chanson – O meu Canto, op. cit.

[vii] Atribuído por Bakibab Borcar, outro gigante da poesia concani.

[viii] Título que lhe foi conferido no concurso de poesia concani inédita, realizado no Clube Nacional, de Pangim, em 2 de janeiro de 1966 (Cf. ‘Prefácio’ de Maria Aurora Couto, ao livro My Song – Ma Chanson – O meu Canto, op. cit., p. 119).

[ix] Carmo Azevedo (1912-2003) foi médico, jornalista e investigador de história e arte goesas.

[x] Jorge de Abreu Noronha (1930-2007), um goês radicado em Portugal, foi um dos principais promotores da ideia de publicar o volume trilíngue (Minha Canção – Ma Chanson – O meu Canto) dos poemas de SarDessai.


Publicado na Revista da Casa de Goa, Serie II, No. 16, Maio-Junho de 2022, pp 38-41. II Série – N.º 16 – Maio/Junho de 2022 – Casa de Goa


Três poemas de R. V. Pandit

À espera de Rama

As minas
Fizeram de Goa
Não sei o quê.
As pedras 
Em ouro transformadas?
Não sei.
Mas uma coisa eu sei –
Homens, que anos atrás
Eram de oiro, 
Hoje estão feitos pedras
Como a Ahilia[1]
À espera de Rama!!

Inimigos pela língua?

Tu e eu
Irmãos somos…
Inimigos tornámos23
Por causa da língua!

O Goês

Homem de Goa
Tu és como a jaca
Com uma coroa de espinhos
Como Jesus Cristo.
Mas por dentro são bagos
Cheios de mel, de amor.
Tu és assim! Tu és assim
Ó homem de Goa.

A poesia de Raghunath Vishnu Pandit (1917-1990), conhecido como R.V. Pandit, é caracterizada pelo uso do verso livre; e, pela objectividade no tratamento do assunto e economia da linguagem, torna-se, às vezes, aforística.

Escreveu os seguintes livros de poesia: Ailem toxem gailem [Cantei tal como senti]; Mhojem utor gavddiachem [Falo tal como um gauddi[2]]; Urtolem tem rup dhortolem [Formas que ficam]; Dhortorechem kavan [Cântico da terra]; Chondravoll [A Lua][3]; e, mais tarde, Reventlim Pavlam [Passos na areia], Lharam [Ondas], além de livros de prosa. A sua obra demonstra entranhado amor a Goa e marcado interesse pelo bem-estar dos extractos mais desfavorecidos da sociedade goesa.

Dedicando-se ao estudo do folclore, publicou dois volumes de histórias tradicionais concanins – Gôdd gôdd kanniô [Contos doces] – e uma versão para crianças de alguns episódios do Ramaiana e Mahabarata. Em 1975, o seu livro Doriá Gazota [O Rugir do Mar] ganhou o prémio da Sahitya Akademi (Academia indiana de Letras). Em 1982, foi recipiendário do galardão Padma Shri do Governo da Índia.

Como fotógrafo amador, Pandit captou de forma excepcional a vida de Gandhi, de quem era sequaz. Foi sócio efectivo do Instituto Menezes Bragança, em Goa, e recebeu o grau de doutor honoris causa de três universidades.[4] É um dos poucos poetas da língua concani e marata com obras traduzidas em português e inglês.[5]

Segundo A Literatura Indo-Portuguesa,[6] de Vimala Devi e Manuel de Seabra, os poemas de Pandit eram vertidos para português pelo próprio; no entanto, todos que encontrámos são da tradução de Mucunda Quelecar[7]; e a tradução inglesa da autoria de Thomas Gay[8]. Na transliteração para caracteres romanos dos seus poemas, que escrevia em devanagárico, teve a ajuda do jornalista Felício Cardoso.[9] E a tradução livre transforma-nos todos em novos poemas.

As três peças que figuram acima tratam de temas candentes do período pós-1961:

O primeiro poema refere-se à transformação da vivência goesa na sequência da exploração das minas de ferro e manganês, a que se procedeu, vigorosamente, a partir dos anos sessenta do século XX. Só após algumas décadas é que o território se apercebeu das nefastas consequências da actividade mineira.

O segundo é um poemeto com um quê de autobiográfico, pois no movimento que precedeu ao histórico Opinion Poll (escrutínio da opinião), em 1967, Pandit bateu-se pela integração de Goa no estado vizinho do Maharashtra de língua oficial marata. Foi por isso hostilizado por escritores goeses da língua concani que eram a favor de estatuto político independente para Goa dentro da União Indiana.[10] Essa rotura com os “irmãos” do idioma goês ter-lhe-ia inspirado esse poemeto.

O terceiro poema é o seu cântico de louvor à índole do povo goês.

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[1] Ahilia petrificou-se quando amaldiçoada pelo marido Gautama, tendo mais tarde mudado de estado com um simples toque dos pés de Rama, príncipe de Ayodhya e herói do poema épico Ramaiana.

[2] Os gauddi, considerados os mais antigos habitantes de Goa, provêm da raça proto-australóide.

[3] Edições de autor, publicadas no mesmo dia (26 de janeiro de 1963), em Goa.

[4] Embora a sua habilitação académica não passasse do bacharelato em Letras (B.A.), recebeu esse reconhecimento de universidades filipina, brasileira e americana (Cf. António Pereira, The Makers of Konkani Literature (1982), p. 230; Konkani Vishvakosh, Vol. II, p. 629).

[5] Voices of Peace (Goa, 1967) e The Tamarind Leaf (Goa, 1967). Os seus poemas em tradução portuguesa estão compilados nos n.ºs 119 (1978), 122, 123 (1979) do Boletim do Instituto Menezes Bragança.

[6] Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1971.

[7] Segundo informações prestadas por Madhav Borcar, poeta goês da língua concani, Mucunda Quelecar (1904-?) (vulgo Mukund[a] Kelekar) tinha conhecimentos profundos do concanim, português, francês, latim e inglês. Escrevia regularmente para O Heraldo e A Vida e, em inglês, para The Navhind Times. Foi professor de português e de matemática num liceu particular em Pangim. Traduziu para o concani os contos de Stefan Zweig.

[8] Thomas Gay, de nome completo, Thomas Edward Waterfield Gay (1905-2001) (sendo este último o apelido de sua mãe, adoptado em 1955), alto funcionário do Quadro dos serviços civis britânicos na Índia (Indian Civil Services, ICS). Segundo nos disse Borcar, Gay limava os poemas traduzidos por Pandit em inglês.

[9] Informação prestada por Borcar. O contista e jornalista Felício Cardoso (1932-2004) lançou as bases da nova sintaxe do concani, no período do pós-1961. O seu jornal Sot fundiu-se com o diário A Vida, formando, mais tarde, o jornal Divtti, de que Cardoso foi director associado.

[10] Informação prestada pelo padre Mousinho de Ataíde.


Reconhecimento: Publicado na Revista da Casa de Goa, Lisboa, Série II, No. 13, Novembro-Dezembro de 2021

https://casadegoaorg.files.wordpress.com/2022/01/revista-da-casa-de-goa-ii-serie-n13-novembro-dezembro-de-2021.pdf


Um punhado de terra

 

(Um conto de Jess Fernandes, traduzido do concani por Óscar de Noronha)

História que se passou anteontem à tarde. Veio visitar-me um amigo muito íntimo: Cirilo! Deixara Goa há muitos anos, passando a viver no estrangeiro, onde casou e fez a vida. Como diz o ditado, estamos aí onde nos enchemos a papinha!

O rapaz era muito bem instruído. Pretendia trabalhar na sua terra, fazendo algo com as suas próprias mãos. Mas aqui nunca lhe apreciaram os préstimos. Pelo contrário, foi esmagado tal qual uma mosca que pousa sobre a mesa.

Quando partia para o estrangeiro, choraram muito os seus pais. Era seu único filho e queriam-no sempre consigo, diante dos seus olhos.

Depois de o filho partir, o pai, cismando em como o havia educado e a razão pela qual ele fora embora, fechou os olhos. Os seus últimos sacramentos administrei-lhos eu, José, como se tratasse de meu pai.

Cirilo voltou após uns anos de ausência. A mãe não podia conter a sua alegria. E viera com muito dinheiro.

Pascu, pai do Cirilo, fora manducar[i]. O terreno à volta da casa, o qual não pudera comprar, comprou-o Cirilo, com o suor do seu rosto. Consertou a casa; e a várzea que a mãe cultivava comprou-a ao mesmo proprietário, além dum pequeno valado que lhe pertencia: fê-lo porque a esse prédio de dois mil e quinhentos metros quadrados estavam ligadas muitas das nossas memórias. Ficávamos aí a brincar, fazendo armadilhas para apanhar passarinhos; e pescávamos no riacho que corria aí perto. Era aí que resolvíamos os nossos grandes e pequenos problemas, partilhando as nossas dores e alegrias. Lá no valado não medravam grandes árvores frutíferas, excepto as seis de mirabolão[ii]. As suas nozes, nunca as colheu o proprietário: comiam-nas os transeuntes. Por isso, fora baptizado de ‘valado dos transeuntes’.

Na verdade, estava eu de olho nesse valado. E disso sabia bem o Cirilo. Por isso, antes de falar ao proprietário, consultou-me sobre o assunto. Mas eu reflectidamente disse que não, pois a bagatela que ganhava mal dava para fazer face às despesas. E que ocupação a minha! A de simples amanuense. Também meu pai o era, sob o regime português em Goa; e após a sua morte consegui esse lugar, para o qual o regedor da aldeia, grande amigo do meu pai, propusera o meu nome ao Governo.

A mãe de Cirilo fez-se dona da várzea e do valado, porém, poucos anos viveu a desfrutar desse papel. Um certo dia, partiu para onde estava o seu marido na eternidade, e deixando sozinho o filho Cirilo.

Após a morte da mãe e até o momento em que Cirilo continuou em Goa, a minha mãe tratou-lhe como filho. E este, quando estava prestes a partir para o estrangeiro, abraçou a minha mãe, e, muito comovido, disse: ‘Mãe, como é que lhe vou pagar todos esses favores? Se o José tivesse uma irmã, far-me-ia seu cunhado. Mas também ele, coitado, é filho único, tal como eu!’

Aquele desabafo tendo cortado o coração à minha mãe, também chorou amargamente. Puxou-lhe para o seu peito e, afagando a sua face, disse: ‘Porque querias ser seu cunhado, meu filho? Tu és irmão dele e meu filho mais novo, querido!’

Nós os três passámos uns momentos a fitar um ao outro e debulhámo-nos em pranto.

Antes de partir, o Cirilo confiou a sua várzea a um vizinho e a casa a um primo afastado, a quem pediu que arranjasse inquilino. Aliás, o Cirilo tencionava entregar tudo isso à minha mãe, porém, dada a distância de meia hora que separavam as nossas casas, reconheceu que isso não nos seria possível. Tínhamos uma única várzea e um só prédio ligado à casa. Para além de cuidar dos nossos bens, a minha mãe não tinha possibilidades de zelar pelos interesses do Cirilo.

Algum tempo depois de Cirilo ter saído Goa, a família do seu parente passou para essa casa. Escrevi a esse respeito ao Cirilo; e o parente fez o mesmo. Só de pensar que o seu primo iria olhar bem da casa, pois gastara oitenta mil rupias nas benfeitorias, encheu de satisfação o coração de Cirilo.

Esta história passou-se há quinze, ou mais, anos. Entretanto, Cirilo deu uma saltada até Goa e, sem pretensões, acabou por casar com uma prima direita minha. Um dia, disse a brincar à minha mãe: ‘Mãe, olhe que ganhei! Não só sou teu filho; até me casei com a filha da tua irmã. Portanto, tanto sou teu filho como teu genro.’[iii]

Nem sentimos que haviam passado esses dias de grande alegria. Terminadas as férias de dois meses, Cirilo seguiu para o estrangeiro.

Passaram mais uns anos. Nasceram-lhe aí um rapaz e uma rapariga. Era amorosa a sua vida de família e corria-lhe tudo muito bem.

No mês de Natal, e no dia em que o céu azul de Goa viu, orgulhosamente, nascer o sol da liberdade, o seu coração pulou de alegria. Cirilo reuniu os goeses da diáspora e dedicou-lhes uma festa.

Pensou que Goa e os goeses veriam melhores dias. De quinze em quinze dias escrevia-me a pedir informações sobre como andavam as coisas em Goa, onde não tinha outros interesses senão a sua quinta, a sua várzea e a minha pessoa.

Um dia, foram promulgadas em Goa as leis do inquilinato e do mundcarato[iv], as quais mudaram de todo o modo da vida goês. De uma pancada, reduziram os pequenos proprietários a mendigos de rua; e aqueles que o senhorio havia abrigado no seu prédio tornaram-se donos deste. O caso do latifundiário é outro cantar: Deus sabe como eles adquiriram esses prédios rústicos de grande extensão! Mas lá porque foi incorrecto um indivíduo não justifica que seja punida toda a sua classe.

Lembro-me do que se passou no dia em que apareceram as tais leis. Os meus dois manducares colheram os cocos do palmeiral e venderam-nos sem minha licença. E depois de gozar bem das lanhas, espalharam as suas cascas por todo o lado. Quando lhes arguí, os homens teceram uma filosofia, citando as novas leis, como falsos proprietários de palmo e meio. Depois de me queixar contra eles à polícia, foram manietados. Estiveram presos por quatro dias; foi-lhe sacudido o pó dos seus costados, e foram libertados: esta é outra história!

Logo que Cirilo teve conhecimento da nova legislação, regressou a Goa! Mas deixou-se cativar com umas historietas tanto pelo cultivador da várzea como pelo ocupante da sua casa.

Um dia, quando passei pelo escritório dum primo, apercebi-me das trafulhices do parente de Cirilo. Longe dele, um empregado dessa repartição contou-me umas anedotas. Informei o Cirilo e fiquei a aguardar a sua chegada.

Entretanto, tive de me deslocar de serviço até Delhi, onde demorei um mês e meio. Nesse interregno ouvi dizer que o parente consertara a casa. Quando a visitei após o meu retorno, notei que o homem, gastando rios de dinheiro, transformara a casa por completo. Explicou-me o parente que, como nunca havia pago renda ao Cirilo, empregara esse mesmo dinheiro nas benfeitorias.

Mesmo que com essas palavras parecesse decidido a levar tudo, fiquei com certas dúvidas. Dei um relato completo ao Cirilo, urgindo com ele que voltasse logo a Goa.

Cirilo chegou precisamente no dia em que estávamos, eu e a minha família, na vila de Mapuçá, a assistir a cerimónia do crisma do meu afilhado. Com umas poucas peças de roupa na maleta, saiu a dizer, ‘Vou a Pangim e volto amanhã.’ Quando voltámos à tardinha, tivemos notícias sobre Cirilo. Aguardei a sua chegada, até às 10 horas da noite. Ontem da manhã não fui ao serviço; também a minha mulher decidiu, de repente, ficar em casa, de licença.

Ontem, mais ou menos a um quarto para as seis da tarde, chegou Cirilo à nossa casa. Estava completamente fora de si. Olhando para o seu traje e o seu rosto apercebi-me de muita coisa, pois notei-o a lacrimar. E logo que me viu, derramou lágrimas abundantes. Sem dizer patavina, abraçou-me forte e chorámos os dois. Não foi preciso que me dissesse coisa alguma por palavras.

Depois de um grande silêncio, falou. Abriu o seu coração, ficando patente a agitação lá dentro de si: o cultivador da sua várzea tornara-se proprietário! Segundo as novas leis estatais, tinham sido marcados os preços por metro quadrado. Foi uma ninharia o preço que o prédio rústico obteve. Se o pagamento fosse feito de uma só vez, eram trinta e cinco poiçás por metro quadrado; quem o fizesse em prestações, pagava sessenta poiçás por metro quadrado. Ora, não era habitual achar nem sardinha nem arenque por trinta e cinco ou sessenta poiçás; porém, o manducar cultivador acha terreno, ou pelo menos a forma de pagar em prestações.

Uns anos antes, Cirilo comprara a mesma várzea por uma rupia o metro quadrado e depois de todos esses anos, qual o preço que cobrou? Receberia pelo menos os juros correspondentes ao dinheiro despendido? Hoje em dia, um agricultor possui ainda sete, ou até oito, várzeas; segundo a lei do mundcarato, a várzea do senhor passou para o manducar. A bem falar, o agricultor devia ter direito a certa várzea ou a uma só várzea, e ainda essa pertencente ao senhor com muitas várzeas.

Esse primo tornou-se dono da casa e prédio do Cirilo, tendo já registado os mesmos em seu nome, na Repartição de Agrimensura. Assim, o Cirilo ficou proibido de entrar na sua própria casa, que comprara com tanto esforço! Mal soube da vinda de Cirilo a Goa, o primo contractou uns brigões e capangas e postou-os à porta da casa. Cirilo sentiu-se ameaçado. O primo e um dos maltrapilhos haviam registado o valado dos transeuntes em seu nome. Promulgado o registo na agrimensura, o primo tornou-se dono, ficando claro que a papelada que havia enviado ao Cirilo era forjada. Daqui em diante, para conseguir algo, seria preciso subir e descer os degraus do tribunal… e a justiça, estava ela à mão? Só atravessando sete mares…

Com efeito, a lei expulsou um filho amado de Goa e do país. Sentia-se estrangeiro na sua própria terra…

Hoje, ao meio-dia, Cirilo recolheu num saco plástico um punhado de terra lá da sua várzea. Curvando-se, e com os olhos cheios de lágrimas, beijou o solo. Depois, despediu-se de todos e subiu para o avião, voo esse que pôs termo à sua relação com esta terra.… para sempre!

[i] Lavrador que mora, sob certas condições, no prédio rústico dum proprietário.

[ii] Anvalló, em concani.

[iii] Primos direitos são considerados ‘irmãos’, e daí Cirilo ter-se considerado irmão de José e filho da mãe deste.

[iv] O sistema relativo ao manducar.

Notas Biográficas 

Jess Fernandes, de nome completo Menino Jesus de Maria Fernandes, nasceu em 1941, em Quepém, Goa. Tirou o 7.֯ ano do Liceu e fez a carreira de paramédico nos Serviços de Saúde, em Goa. É poeta, contista e dramaturgo da língua concani, e autor de 38 livros. Traduziu em concani vários livros do Velho Testamento e espera publicar brevemente a sua autobiografia.

Reconhecimento

Publicado na Revista da Casa de Goa, Lisboa, Série II, No. 16, março-abril de 2022

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Porque não vem a morte…

Um conto de Damodar Mauzó

Traduzido do concani por Óscar de Noronha

É meio-dia. O sol, qual inimigo implacável, agride brutalmente a pele. O chão cá abaixo, o céu lá acima, e ardem as criaturas como as brasas do fogão a lenha! De todo o lado, um calor de escaldar.

Já lá foi o mês de maio, e o de junho está quase no fim, porém, não há sinal da monção. O solo quente, seco e mirrado de sede, olha súplice para o céu. Não há uma só nuvem no firmamento. Volve então os olhos queixosos, mas ai, não era capaz de verter uma só lágrima.

As mangueiras, as jaqueiras, as árvores de gralha e as palmeiras – murcharam todas elas, coitadas. Queimaram-se as folhas; as sobreviventes estão crestadas. E as arvoretas! Ora bem, vivem porque não lhes veio a morte…. Se é esse o estado das árvores, nem queira saber o que é da erva e do arbusto! Há muito que a erva se desenraizou, e ora lá se vê só areia. E os arbustos? Encontram-se no seu lugar umas esguias estacas.

As várzeas confundem-se com as hortas. Os poços secaram um por um; e as lagoas ressecaram. Até a sua lama se transformou em pedregulho. Os seres humanos da região safaram-se para terras longínquas. Os pássaros migraram para outros países. Pereceu o gado. Tudo que sobrevive espera a morte.

Nesse sol abrasador do meio-dia, passa por lá uma cobra-d’água levando consigo o seu rebento. Vai em ritmo acelerado. Faria algum sentido sair a essa hora? De mais a mais, é cobra, cuja natureza é de se arrastar pelo chão. Devia-lhe arder o corpo; pelos vistos, a cobra-d’água não se dá conta disso. Vai andando, com os olhos postos no filho. Quem visse essa cena não deixaria de lhe chamar louca. Mas... quem vai reparar nisso?

A cobra-d’água atravessa várzeas, hortas e valados. Deparando com um coqueiro, à sua sombra faz uma breve pausa; suspira e põe-se de novo a caminhar com o filhote. Ela própria não deve saber para onde vai.

A certa altura, encontra uma várzea. Ó minha mãe! Que tamanha que ela é! Mas evitando pensar nisso e de se deter na soleira, desce do valado e percorre os cômoros da várzea. Ó senhora minha! Quem a visse agora, não deixava de lhe dizer com dó: "Cobra-d’água, por que andas à soalheira do meio-dia? Contas pelo menos chegar ao outro lado? Cuidado com a tua vida! Melhor era voltares atrás para este valado. Fica ao pé desta árvore-de-gralha até à tardinha!…" Mas a cobra-d’água não se dispunha a ouvir. Nem tomaria a peito esse conselho. Quando muito, diria de passagem: "Olha, não há tempo para descansar! E que importa que eu morra no caminho? Ora, só porque a morte não vem..."

Essa várzea tem até os cômoros já desmoronados. Só se faz sentir a areia, essa areia quente! Lembra-se de quando, à cata de um rato, entrara na casa do José, vendedor de grão assado. Ficara num canto a observá-lo. O José havia deixado ao lume uma grande panela de barro, em que metera areia. Sobre esta, depois de bem aquecida, vazara grão, e ora... ao caminhar, arrepiou-lhe o corpo de se imaginar ela própria o grão sobre a areia!

‘Ai-ai!’ suspirou a cobra-d’água ao ver um valado que, à borda, tinha um anacárdio – árvore de bibó! Ansiando por um pouco de sombra, acelerou o passo e chegou-se ali. Subiu com algum esforço e meteu-se debaixo da árvore. Ó senhor! Onde está o seu filho? Até há pouco estava com ela. Aflita, voa pelo trecho do valado, quando afinal estava mesmo lá em baixo. Julgando que tinha dificuldade em subir, a cobra-d’água saltou, para prestar ajuda. Caramba! Porque está assim inerte? Ela só dá com o caso quando lhe toca com a cara….

Com a morte na alma, subiu de novo ao valado. Não tinha o mínimo de forças para levantar o corpo do filho. Sentou-se debaixo da árvore, a pensar. Passaram-lhe então pela mente um incidente após o outro.

Quando vivia o marido, não faltava nada à cobra-d’água; satisfazia-lhe todas as necessidades. E como adorava ele os filhos! Mas… não era essa a vontade divina. Um dia, o marido teve de sair à busca de alimento. Como tivesse muita sede entrou numa pia anexa a uma casa, à procura de água. Estava lá um caldeirão. Ó que sede de água! Desejando satisfazê-la, meteu a cabeça nessa panela. Entretanto, um malvado quebrou-lhe a coluna vertebral com uma paulada nas costas. Mesmo assim, a cobra-d’água, às escondidas, arrastou-se até à casa. Tentaram de tudo para a salvar, mas...

Ora, a cobra-d’água sentia vontade de morrer... Que tinha mais a fazer na vida? Mas não podia ser! O marido, à beira da morte, havia-lhe aconselhado a tomar conta dos filhos. Por isso, viveria só por amor aos dois.  Porém, foi cruel o destino! Ambos –

Já o verão estava no fim, sem que houvesse o menor indício de chuva. Secos os poços e ressequidas as lagoas, nem para mezinha havia sequer uma gota de água. Nessas circunstâncias, a cobra-d’água superou todos obstáculos para cuidar dos filhos. Privou-se a si própria, mas não os filhos. Donde é que lhes arranjaria água dado que à própria terra escasseava? Entretanto, de sede morreu-lhe uma criança; e ficaram elas duas, a mãe e uma outra. Esvaziara-se toda a região. Haviam partido as serpentes, as cobras de rato e todas outras. Ficara só a pobre cobra-d’água, na expectativa de que viesse a chuva sem mais delongas. E só quando não podia mais, abandonou os seus bens, pegou no filho e partiu... E agora, este mesmo filho deixou-a!

A cobra-d’água derramou duas lágrimas.

‘Porquê choras, cobra-d’água querida?’ – de repente, ouviu ela uma voz, afectuosa, que lhe fez lembrar a do marido – e logo rolaram mais duas lágrimas.

‘Por amor de Deus, não chores assim!'

A cobra-d’água, cismada, lançou um olhar ao redor. Não estava ninguém no valado; além da árvore de bibó, nem uma planta sequer. Então, seria mesmo o bibó–?

‘Sim, sou eu mesmo, o bibó, que te estou a falar. Porque choras?’

Fitando a árvore, com os olhos marejados de lágrimas, e a sentir-se já um tanto aliviada da dor, soltou um grande suspiro e contou-lhe a sua história. Comoveu-se muito o bibó! Mas que podia ele fazer? Suspirou e guardou uns momentos de silêncio. Perguntou-lhe então a cobra-d’água: 'Ó bibó, estás aqui só, não estás? Isso não te aborrece?’

‘Que remédio? Dantes, tinha a companhia das trepadeiras e dos arbustos, e ali na borda estava uma palmeirinha. Mas... mas hoje, estou cá sozinho, a contar os dias. Quando me lembro dessa palmeirinha, fico triste! Nem coco verde chegou a dar; entretanto, foi-se embora, coitada!’

‘Não leves a mal esta pergunta, bibó!... O que te faz viver?'

Dentro em pouco, respondeu o bibó: ‘A minha vida já não faz sentido. Sei muito bem que mais dia, menos dia, hei-de morrer. Estou vivo, cobra-d’água... estou vivo somente porque não vem a morte!...’

O bibó vive porque não lhe vem a morte! Também eu vivia porque não me vinha a morte? Não! Vivia mas era por causa dos meus filhos – e sim, quem tenho eu agora? Porquê viver?

‘Entendo. Ó cobra-d’água, já sei o que estás a pensar. Ouve bem! Existem muitas criaturas no mundo. Umas estão desapontadas; outras sentem-se livres por terem já cumprido os seus compromissos, os seus deveres. Estas não pensam na morte; vivem pacatamente, aguardando a sua hora… E tu não deves morrer! Ouve lá! Existe uma lagoa a umas sete ou oito léguas a leste daqui. É pequenina. Vai tu ficar nesse lugar. Ninguém conhece o sítio, e não me parece que chegue lá alguém! Vai lá viver. Pronto, tens de viver, pelo menos porque te não vem a morte.”

Levantou-se a cobra-d’água; olhou para o bibó e começou a lacrimar.

‘Cobra-d’água, queiras fazer-me um favor!’

‘Diz, bibó, diz! Estou às ordens. Queres que eu fique aqui mesmo?’

'Não, cobra-d’água. Se ficares aqui, não viverás. Tens de ir mesmo. Mas antes disso, faz-me este favor...’ disse o bibó, emocionado. ‘Há mais de um mês que não vejo nenhum ser vivo. Hoje vieste tu. Seria um favor se por uma última vez serpeasses, à vontade, sobre o meu corpo…'

A cobra-d’água subiu num instante. Chegou até ao topo, trepando-lhe o ombro e enrolando-se-lhe à mão. E desprezando a sua própria dor, brincou e dançou, antes de descer da árvore. O bibó ficou muito contente. Então, a cobra-d’água volveu um derradeiro olhar ao filho e uma comovente despedida ao bibó, e pôs-se em direcção a leste.

O mesmo impiedoso sol. Chega o final da tarde, mas a terra está quente na mesma. O grande astro, a caminho do ocaso. Chega a tardinha. Põe-se o sol e some-se. Os seus raios vermelhos espalham-se pelo chão. A terra, que sempre a esta hora se apresentava tal qual uma noiva, parece hoje muito enferma. A cobra-d’água volta a andar e sempre a lamentar esse triste estado ambiental. Passa o lusco fusco e vem a noite, e ainda a aurora. Entretanto, a cobra-d’água, sonolenta, não se atreve a repousar: que será dela se inesperadamente cair num sono profundo? Tinha de chegar quanto antes àquela lagoa…. Ó esperança, já algum dia esqueceste alguém?

Mais um meio-dia; e o mesmo calor ardente! A cobra-d’água segue o seu caminho, sem o mínimo de descanso. Passa o meio-dia e vem o crepúsculo… Que é isso? Como secaram assim as plantas! De todos os lados parecem elas uns postes desnudados, e ainda no meio delas, umas plantas viçosas! Espanta-se a cobra-d’água, mas não se deixa ficar por lá.

… Era esta a tal lagoa! Haviam sobrevivido as plantas, só por estarem à sua margem! Seja como for, a cobra-d’água chegou! E então, que límpida essa água! Fica a cobra d’água a admirá-la por uns momentos. Logo depois, saindo do seu transe, vai até à beira da água. E quando a ia tocar com a sua língua sequiosa, lembrou-se do marido. Morrera precisamente ao beber água!... E dos filhos – haviam deixado o mundo angustiados por falta de água para beber!... E morre o bibó por não haver água – anseia morrer, mas vive só porque lhe não vem a morte.

Escurece. Com passos suaves, vem a noite. A cobra-d’água avança. Mergulha-se na água; há dias que não a via! Bebe até dizer basta; dança, brinca, nada, cai de sono… e dorme.

Splash! Splash! Desperta a cobra-d’água, intrigada com esse som logo à aurora, e vê lá gente! Cheia de medo, afunda rapidamente a cabeça; e quando a retira, vê um jorro de água a encher um camião-tanque. Assusta-se! Em tempos, vira bombear a água duma várzea. Que raio de seres humanos! Só Deus sabe como descobriram essa lagoa! Irão levar esta água e dentro em pouco não haverá mais! E… e… depois –

Baixa o nível da água; reduz-se a metade; e logo resta lá muito pouca… E –

‘Ei! Vejam aí, uma cobra-d’água!' grita alguém.

‘Traz-me um pau!... Anda cá….'

A cobra-d’água cerra os olhos. Tem saudades do marido e sente-se feliz por saber que vai ter morte igual à dele. Tem saudades também dos filhos – foi bom terem partido antes dela! E aquele bibó! Deve estar ainda a aguardar a morte! Porque não vem a morte….

‘Ai!’

'Valente! Foi um golpe de mestre!

 

Publicado na Revista da Casa de Goa, Série II, N.º 7, Nov-Dez 2020


The Migrant

Short Story by Maria do Céu Barreto, originally written in Portuguese as "O Migrante". Translated by Óscar de Noronha, in Under the Mango Tree: Stories Stories from Goa © Fundação Oriente (Goa).

 

Vinod just couldn’t sleep. He tossed and turned in his bed and lay on his back again, just unable to doze off. He thought it better to keep his eyes open and treasure in his heart the little room he shared with his brothers, all of them younger than him. Through the gaps, the faint light of dawn was already visible inside the hut. He knew it was time to be on his feet yet kept lazing in his straw bed for a few minutes, thinking about his impending adventure.

What would Goa, where he was going to hunt for a job, be like? He was told by his country-cousins there that the land was bathed by the sea and its blue waters mirrored the clouds. There were long, seemingly endless, beaches of white sand. He rejoiced at the thought that it must be a very beautiful location indeed. He had seen the sea in the movies; now he would get to soak in its waters.

But then, he wasn’t going to Goa for its beauty. A job, however modest, is what he was looking for. He was gutsy and painstaking; work never intimidated him. Even as a little boy he had helped out in the fields. His father had tried to make sure his children would have a decent future; he had taken a bank loan and spent it all on those fields. But alas, the soil had been ungrateful; the gods did not help, despite the family puja every morning. The hot sun had burnt up all the plantations that he had seen grow. The rain gods had abandoned them. Only wealthy farmers had managed to live through the drought: they had the money for irrigation and to buy electric pumps to draw groundwater. Debts were mounting with every passing month, and one day when he came home, he found his father's body hanging from the ceiling. Unable to pay off the loan, he had committed suicide, like many other peasants in despair.

Vinod rose from his straw bed resolutely. He sat in the doorway to take in the morning air. He looked around. It was all arid. There was no other way out; he had to set off, to help his mother support the little ones, who were still asleep. The school was two kilometres away and they walked to and fro every day. Poor little chaps! Mother tried to persuade him to stay on. She needed him; it would be hard to bear it all alone. He put across his point of view in the best way he could, asking her to pray to the gods as she always did, without ceasing. And then, no more hesitation; his fate was sealed. But today he had still to fetch water from the well – his last chance to help out. With the little liquid left over from the previous days, he had a wash and, as usual, went to the bushes to answer Nature’s call. Toilets were a rare sight in the rural set-up. All governments had promised to build lavatories; those were only election campaign promises, forgotten as soon as the aspirants rose to power.

It was still very early in the morning, yet he wasn’t among the first ones to turn up at the well. There was already a queue for men and another for women. The menfolk usually drew the water and the women headed home with those pots held on their heads. Vinod was glad to see this line-up of women draped in multihued saris; they talked, giggled and looked askance at the boys. Lakshimi was there too. She had captured his heart and, by the looks she gave, his passion for her seemed to be reciprocated. How good it would feel to be back from Goa with money and to marry her! He had heard of many such success stories. He too would do well; he sensed success from deep within his soul.

Back from the well, he saw his mother preparing breakfast at the firewood stove. She handed him a plate of roti and bhaji. He ate every bit, for he couldn’t say when his next meal would be. By now his siblings had woken up and were gearing up for school. Vinod thought of taking the eldest one with him to Goa one day, and then maybe the whole family! At construction sites there was always employment for everyone.

The train was due to leave at noon, and it would be two hours before he got to the station. He thought it better to start out before he had a change of mind. He had written to some of his village friends in Goa but hadn’t heard from them. He hoped at least one of them would pick him up from the station; it would be a relief if they got him accommodation, even if only for a week. His mother handed him whatever she had saved up for emergencies – a thousand rupees, quite a fortune, he thought. He tucked it away, picked up his suitcase, and humbly kissing his mother’s feet bid her farewell.

“God be with you, my son,” said his mother, embracing him. “Krishna will protect you.”

He couldn’t pluck up his courage to hug his siblings, who had started to cry. He patted them on the head and left for the station. He turned round before the last bend of the road: his mother and brothers were there waving at him. He paused for a moment and waved back. He was all alone now.

Vinod heard the whistle in the distance. The train had arrived, a little late as usual. The passengers stood where they thought their wagons would stop and were ready to pick up their suitcases. Travelling as he did, third class, Vinod had no reserved seat. He had to be in readiness, too, as it would now turn quite messy with people jostling for the best of places. As soon as the train halted, he picked his suitcase and dashed off to grab a good seat, and grab one he did. He placed his luggage on the rack and stretched his legs. He was very tired. Lack of sleep, anxiety, tension... Now he was sure to drift off. A few minutes after the train was in motion and had gathered speed, Vinod leaned on the headrest and shut his eyes.

He could not say how long it had been – maybe all night and a good part of the day – but when he woke up he found the landscape had changed. He tried to strike up a conversation with his fellow passengers.

“Have we reached?” he asked a young man who was going to Goa, or so he thought.

“Not yet. It’s still a little too early. We will get there by evening,” said the young man.

He wished to ask him a few more questions about Goa but noticed that he had dozed off. With a few more hours to go, he thought of walking up and down the corridor but feared for his seat. Patience! He would have to remain seated there throughout. He noticed some passengers preparing to eat their home-packed breakfast and, famished as he was, avoided looking at the foodstuff. Just then, a co-passenger invited him to share his breakfast, an offer he gladly accepted.

What a long journey it was! He closed his eyes again, knowing well he would not get even a wink of sleep amid the bustle of hawkers. The train had halted at a station and the peddlers were crying their wares – food, fruits, artefacts, and other items. They did everything to draw the attention of the passengers and win them over. Vinod smiled. He hoped to have Lakshimi by his side on his next trip. A slim and pretty girl she was, whose long hair, charcoal-black eyes and tanned skin made his heart stop. He had not bid her goodbye, for in the village boys seldom talked to girls without their parents' permission. And badly off as he was, they would ignore him. But everything would change when he returned with his pockets stuffed with cash. Where would he celebrate his marriage? Back at his native place for sure, in keeping with tradition. All expenses would be borne by the bride's parents. He would not ask for a dowry; he knew that her parents did not have the means and he had no intention to get them into debt, like many families did…. But would she wait for him until he came back?

Vinod fell asleep, lulled by these thoughts and unmindful of the noise. On waking up, all he saw was lush green countryside and water, water, water everywhere. There were lakes and rivers, and as the train carried on, he saw waterfalls too. He had never encountered anything like this before; he was sure it was Goa. Half an hour later he felt the train grind to a halt. The whistle blew; they were at Vasco da Gama, the port city of Goa.

A motley crowd welcomed their friends and relatives. Vinod felt his ears numbed by the numerous languages he heard: it was a real Babel. He even heard some words in his language! Was it his friends? He saw none; it was hard to locate people amidst the chatter. He let the other passengers exit first; he was not in a hurry. Then, all of a sudden, someone called out his name.

“Here, here we are!” Turning around he spotted Rama and Vishnu, his childhood friends. A strange joy seized his heart: he was no longer alone. They hugged him; they were thirsting for news from their land, family, friends, but Vinod, not in the mood for all that, promised to field questions a little later. He noticed that they looked very different, well dressed and cheerful as they were. Obviously, life had not treated them badly. He was happy for them.

“You’re staying with us tonight! Mother is waiting for you. Let’s see, if you like, you can even stay longer, until you get a job,” said Rama.

Vinod was thrilled. He did not know what to say.

“How are we going? Shall we take a rickshaw?” he asked.

“No, no, we’ll take our motorbikes.” Vinod was amazed. Their bikes? How did they manage to buy bikes? Questions and questions that would have to wait for answers…

On arriving at Rama’s house, Vinod found the pleasant aroma of food engaging his senses. It was a small house compared with the others around there, but it had electricity, piped water and even a gas stove – luxuries for people from poor, parched areas.

“Miss our land and our friends so much!” Rama exclaimed at the post-dinner chat. “No doubt it’s great out here, you know! Communities live in peace; no one interferes with you. Yet, it’s not the same as your own land. It’s a different culture; language and food are so different. To fit in, we’ve had to learn the local language, so much so that many of us speak better than the locals do!”

“And do the locals treat you well?” inquired Vinod.

“Well, they bear with us. They feel we are robbing them of their jobs and that in future they’ll be outnumbered by the migrant population. Maybe they will; I don’t know. However, they shouldn’t forget that we’ve helped them develop this state. We do all the hard work, so I think we’re a part of this land, although they don’t think so. They are proud of their half-Western culture and dub us ghanti and shower insults, which we pay no heed to… To make sure we do well, we must avoid squabbles.”

“And why can’t they get those jobs?” Vinod retorted.

“They can, except that they don’t want to work hard; they try to find jobs that won’t have them dirty their hands. The educated lot opt for the civil services or private company jobs. They think this fetches them better security and better respect. And those who don’t get such jobs or aren’t happy with what they have, simply migrate. I know families and families that have migrated.”

“Where do they go?”

“Don’t ask! Maybe Dubai, England, Canada… I think there are Goans scattered around the world.”

“Are they happy?”

“Hard to say…. They earn better and enjoy a better quality of life… And who knows, maybe they even suffer humiliations like we do and are treated as second-class citizens.”

“And they sure miss their land,” observed Vinod.

“Of course, they do. They celebrate their respective village religious festivals, cook typical Goan dishes and even have exclusive Goan associations, where they meet regularly. You see, no one can forget their own little land.”

“So they are like us!” exclaimed Vinod.

“Yes; only that we are migrants and they are emigrants.

”Vinod was very tired and, by now, dying to go to bed, but the conversation was so interesting that he decided to linger.

“I don’t understand how you guys have all these things at home, and bikes too.”

“That wasn’t easy. We had to work hard. Of course, we have to also be in the politicians’ good books. At election time they grant whatever we ask for, in exchange for votes. The larger the family, the greater the bargaining power. For instance, you are alone and won’t get much, but if you tag your family along, you’ll get much more.”

“And how did you secure this place?”

“That wasn’t difficult. In fact, one has only to build a hut in some vacant space, live there and in time government legalises everything.”

“Incredible!” said Vinod. “I think coming here was the right thing to do. I’ll bring my family here as soon as I can.”

Just then they overheard some commotion outside. “What’s that?” said Vinod. “Who’s fighting?”

“Not to worry! That’s Vishnu; he drinks every night and creates a racket in the neighbourhood. He spends all his earnings on drinks. He has three children, and, to support the family, his poor wife works at several households. This is a real hazard in Goa. Alcohol and drugs are easily available. There’s a bar every few hundred metres. That’s a great temptation. Make sure you don’t fall into this trap, for then it’s tough to get out of it. We’ve come here to make money and have to focus on that.”

“Rama, thanks for the warmth and advice… I won’t do any such thing. I’ve suffered enough back home; I’ve seen misfortunes caused by the lack of money. The first thing I’ll do now is look for a job.”

“I’ll help you if you like. I know the builder of the nearby constructions. If I recommend your name, he’ll find you a job.”

“Yes, please do.”

Vinod thanked him once more and went off to bed. The morrow would be another day. So far so good! The future was in God’s hands. He smiled and fell asleep with these thoughts. Was he dreaming of Lakshimi?

Glossary

Roti: An Indian unleavened flatbread made from wholewheat flour and water that is combined into a dough. It is rolled out and cooked on a griddle over a flame.

Bhaji: A vegetable preparation

Puja: Prayers

Ghanti: Lit. From across the ghats. Coll. Outsider. A derogatory term directed at people, especially non-Goans who come to Goa, whether they are from across the ghats or not.